quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Educação popular vista de uma forma mais ampla

O PROCESSO GERAL DO SABER

(A educação popular como saber da comunidade)

É preciso recuar longe, memórias de um passado remoto, para conhecermos como o saber terá emergido à vida e, circulando entre tipos de pessoas, terá diferenciado uma região de si mesmo como educação. Como isto terá se passado muito antes de seres, pouco a pouco, haverem dominado a escrita, é evidente que não ficaram marcas e tudo o que os investigadores do assunto encontram são sinais efêmeros, de que constroem suposições. Exploremos aqui algumas delas.

O Saber surge e circula

Quando um remoto antropóide, um ascendente muito próximo do primeiro homem, emergiu à vida, ele já possuía alguns traços corporais que o tornariam diferente de todos os outros seres vivos, mesmo os mais evoluídos até então. Tinha sinais no corpo que transformariam o ato de saber, que diferencialmente se distribui por tudo o que é vivo, no ato do saber simbólico. Que tornariam o conhecimento que qualquer ser vivo tem para viver, na consciência do saber, que é o começo da possibilidade de os seres vivos aprenderem não apenas diretamente do e com o seu meio natural, naturalmente, mas uns com os outros e uns entre os outros, culturalmente.

Quando os nossos ascendentes peludos, ainda desprovidos de símbolos, palavras e, portanto, de cultura, desceram das árvores onde por milênios sobreviveram a salvo de répteis e grandes mamíferos predadores, eles já então eram seres: 1) aptos a se colocarem de pé sobre as patas traseiras e assim ficarem por longo tempo, deixando livres as mãos para trabalharem as coisas à sua volta; 2) com mãos que, ao invés de se desenvolverem como patas, garras ou nadadeiras, tornaram-se sensíveis, capazes de lidar com grandes e pequenos objetos e, o que é mais importante, mãos com o dedo polegar que, ao longo da evolução da espécie, aproximou-se dos outros dedos até quando, já nos hominídeos, tornou-se rotativo e oposto a todos os outros (experimente usar as mãos sem os polegares); 3) com os dois olhos colocados não dos lados do rosto, mas juntos, no espelho da face, capazes de verem tridimensionalmente uma só imagem ao mesmo tempo, o que gerou a possibilidade da atenção concentrada, dirigida por um olhar em foco desde muito perto até muito longe e, o que é mais, um olhar que via "em cores"; 4) com um cérebro proporcionalmente maior do que o de todos os outros mamíferos, capaz de crescer em volume e complexificar-se em circunvoluções entre as gerações, em direção às áreas do pensamento e da integração da identidade (da consciência de um eu), domínios internos ao mistério da vida, desde onde viria a desabrochar a alvorada do homem.

Assim, em apenas um ramo de toda a vida, a própria vida começou a fazer com que aos poucos a evolução corporal cessasse de se modificar significativamente, menos no cérebro. Tal como outros seres vivos, estes antropóides que nos antecederam de alguns milhões de anos terão sobrevivido porque aprenderam a viver em bandos errantes onde, com uma flexibilidade muito maior do que em outras espécies de animais, havia uma progressiva diferenciação de tarefas. Onde o interesse coletivo deixava margens maiores para a inovação, e onde não apenas uma ordem biológica do corpo, mas uma ordem cultural do grupo a cada "dia" mais (leia-se "milênios"), regia a conduta individual.

Alguns acontecimentos da relação entre o corpo e a vida social, aparentemente sem importância, são importantes. Mais do que isto, são fundamentais. A evolução da vida limitou entre nossos ancestrais a descendência a um filho de cada vez (gêmeos são exceções). A fêmea da espécie tem apenas duas mamas na frente do corpo. Mesmo entre os macacos superiores (nossos primos-irmãos, mais do que nossos ancestrais) a mãe carrega o filho aconchegado à frente, no peito, e não nas costas, como entre os macacos inferiores e os outros mamíferos. Amamenta os filhos face a face e os olhos se encontram enquanto o leite transfere a vida de uma ao outro. Crias de antropóides e hominídeos demoram muito tempo a "crescer" e, assim, dependem de relações afetivas estreitas com os pais durante uma longa e importante parte de suas vidas.

Ora, essas trocas de olhares e gestos de afeição não estão longe de ser o repertório dos momentos que garantem o surgimento de sentimentos de "eu" e de "nós", o que possibilita um relacionamento entre iguais tão estável e profundo que possa ser, por isso mesmo, a condição de um modo diferente de ensinar-e-aprender. O ensino, que entre os homens é um bailado de gestos de corpos dóceis, mãos hábeis, olhos acurados que se encontram face a face e, juntos, olham em uma mesma direção, de inteligências conscientes e identidades capazes de sentimentos até então inexistentes, precisou esperar que o corpo da vida tomasse tais formas e fosse capaz de estabelecer tais relações com o outro, no mundo, para então aparecer plenamente.

Muito mais do que entre os macacos superiores e mais ainda do que entre os seres que já então existem entre o animal e o humano, a vida coletiva se impõe e a pequena determinação biológica de suas relações entre sujeitos pensantes gera uma lenta passagem do conhecimento, para o conhecimento simbólico. Se durante muitos milênios para sugerir ao filho uma estrela o pai tinha de esperar a noite e apontar para uma delas, veio o tempo em que ao meio-dia ele podia pronunciar algo como "taug", e os dois estariam pensando em "estrela". Primeiro não há símbolos e é difícil saber e transferir o saber; depois eles dizem, são sinais; finalmente representam, são símbolos, a morada do saber humano.

Desprotegidos de força e armas do corpo para matar ou fugir e, inicialmente, desprovidos de um saber necessário que pudesse passar de um corpo a outros, os pequenos seres humanos atravessaram longos períodos da vida convivendo em companhia de iguais no interior de grupos cada vez mais estáveis e, ao longo do tempo, cada vez mais complexos: bandos errantes, hordas, famílias, parentelas, clãs, aldeias, tribos, onde por sobre as tarefas de reprodução da vida física, os homens aprendem a criar a vida simbólica. A criar um tipo absolutamente novo de trocas onde entre um ser e o outro não há apenas eles e a natureza, mas também objetos - o produto do trabalho do homem sobre a natureza -, sinais, símbolos, instituições e significados - o produto do homem sobre si mesmo - a cultura.

Então as pessoas aprendem. Como ensinar-e-aprender torna-se inevitável para que os grupos humanos sobrevivam agora e através do tempo, é necessário que se criem situações onde o trabalho e a convivência sejam também momentos de circulação do saber. Entre mundos e homens muito remotos, onde sequer emergira ainda a nossa espécie - o homo sapiens sapiens - este é o primeiro sentido em que é possível falar de educação e de educação popular. As primeiras situações em que a convivência estável e a comunicação simbólica transferem intencionalmente tipos e modos de saber necessários à reprodução da vida individual e coletiva. O conhecimento técnico dos vários meios, então rudimentares, de lidar com o mundo da natureza; os códigos de regras de conduta que, ao mesmo tempo, constituem e preservam a ordem de pequenos mundos sociais; os repertórios de significados regidos por idéias e palavras, por símbolos e saberes que instauram e multiplicam os mundos simbólicos do imaginário do homem.

Entre antropólogos é costume dizer-se que a sobrevivência de um mundo social depende de os seus sujeitos descobrirem meios de entre eles, segundo as suas categorias de pessoas, circularem sempre: bens (alimentos, objetos, instrumentos e utensílios), mulheres (esposas que geram filhos e que, unindo-se a homens de seu grupo/clã ou de outros, estabelecem alianças entre os homens) e mensagens. Quando o homem sabe e ensina o saber, é sobre e através das relações de objetos, pessoas e idéias que ele está falando. E é no interior da totalidade e da diferença de situações através das quais o trabalho e as trocas de frutos do trabalho garantem a sobrevivência, a convivência e a transcendência, que, no interior de uma vida coletiva anterior à escola, mas plena de educação, os homens entre si se ensinam-e-aprendem. Ao mesmo tempo que socialmente a educação, um domínio da cultura entre outros, é condição da permanente recriação da própria cultura, individualmente a educação, uma relação de saber entre trocas de pessoas, é condição da criação da própria pessoa. Aprender significa tornar-se, sobre o organismo, uma pessoa, ou seja, realizar em cada experiência humana individual a passagem da natureza à cultura.

“A educação forma a personalidade do indivíduo médio e o prepara para viver a cultura: é pela educação que a gênese da cultura se opera no indivíduo. Pode-se descrever a cultura mostrando como o indivíduo a assimila e como nele se constitui, à medida que ele a vai assimilando. Isto porque a educação é, ao mesmo tempo, uma instituição que o indivíduo encontra e o meio que ele tem para encontrar todas as instituições." (Mikel Dufrenne, La Personalité de Base)

Podemos imaginar que durante alguns poucos milhões de anos, e atravessando, dos primitivos bandos errantes dos primeiros homos, às tribos e aldeias estáveis de agricultores de nossa própria espécie, após a revolução neolítica, uma reduzida, porém crescente diferenciação de relações e papéis sociais terá correspondido a uma reduzida, porém crescente, diferenciação de situações, práticas e papéis da reprodução do saber. Locais especializados para o ensino, onde especialistas em ensinar fariam o seu trabalho, é uma criação muito tardia do homem. Durante quase toda a história social da humanidade a prática pedagógica existiu sempre, mas imersa em outras práticas sociais anteriores. Imersa no trabalho: durante as atividades de caça, pesca e coleta, depois, de agricultura e pastoreio, de artesanato e construção. Ali os mais velhos fazem e ensinam e os mais moços observam, repetem e aprendem. lmersa no ritual: seja no enterro de um morto (os homens do paleolítico superior já faziam isto com todo o cuidado), num rito de iniciação, ou em outra qualquer celebração coletiva, as pessoas cantam, dançam e representam, e tudo o que fazem não apenas celebra, mas ensina. E não ensina apenas as artes do canto, da dança e do drama. Ritos são aulas de codificação da vida social e de recriação, através dos símbolos que se dança, canta e representa, da memória e da identidade dos grupos humanos. Imersa nos diferentes trabalhos do viver o cotidiano da cultura: aparentemente espontâneas e desorganizadas, as situações de brincadeiras de meninos, as tropelias de adolescentes e as trocas do amor entre jovens são momentos de trocas de condutas e significados, regidas por regras e princípios que, aos poucos, incorporam à pessoa de cada um os códigos das diferentes outras situações da vida social. Incorporam, no seu todo, a própria estrutura simbólica da sociedade no universo pessoal de idéias, ações e sentimentos de cada pessoa.

Quando os homens do passado longínquo faziam, como fazem ainda hoje todas as sociedades tribais existentes, os seus ritos de passagem, eles não celebravam apenas o fato de que meninos e meninas chegaram a uma determinada idade. Celebravam também aqueles que eram reconhecidos como sabedores dos conhecimentos necessários para o ingresso na vida adulta: jovens que podiam - porque sabiam - caçar e pescar, guerrear e criar e, portanto, jovens que podiam casar e ter filhos, porque já haviam aprendido o bastante para serem adultos.

Enquanto o trabalho produtivo não se dividiu socialmente e um poder comunitário não se separou da vida social, também o saber necessário não teria existido separado da própria vida. Fora alguns poucos especialistas de artes e ofícios, como os da religião primitiva, em algumas tribos, com pequenas diferenças todos sabiam tudo e entre si se ensinavam-e-aprendiam, seja na rotina do trabalho, seja durante raros ritos onde, solenes e sagrados, os homens falavam aos deuses para, na verdade, ensinarem a si próprios quem eram eles, e por quê. Esta foi uma primeira educação popular.

A divisão social do saber

É muito fácil imaginar, mas é difícil conhecer com certeza como uma fração do saber terá sido aprisionada por sistemas de educação e como, portanto, uma parte do ensino terá se tornado propriedade de educadores profissionais e da escola. É possível que primeiro tenham existido especialistas de tipos de saber que, mesmo servindo a todos. não eram possuídos por todos os membros do grupo. É possível que, aos poucos, tenham surgido pequenas confrarias de sabedores especializados: artistas, magos e feiticeiros. Tais confrarias de mestres de ofícios restritos terão se constituído por toda parte à medida que, sobretudo após a revolução neolítica, os homens dominaram meios e técnicas de produção de bens que estabilizaram os grupos sociais e tornaram possível e necessária uma grande diferenciação de sua ordem. Ali, primeiro artistas, artesãos e sábios da tribo e, depois, profissionais derivados de trabalho simbólico - agentes de culto, de cura e de comando - terão se separado parcialmente do trabalho produtivo direto e constituído modos e domínios sociais de trabalho e saber nos quais poucas pessoas, escolhidas por algum motivo, eram iniciadas. Modos e domínios de um saber próprio, apropriado do que antes fora comum e, pouco a pouco, separado dos conhecimentos coletivos, transformando-se, assim, no embrião de um poder de alguns. Mas uma separação completa de algumas modalidades de saber certamente foi ainda mais tardia na história.

Entre cerca de 10.000 e 15.000 anos atrás, os grupos humanos realizaram transformações extraordinárias na ordem da vida social. Após as conquistas tecnológicas dos homos que nos antecederam - os homens de Cro-Magnon - dentro de um mundo onde já havia o domínio do fogo, a construção de casas rústicas, a formação de primeiras pequenas aldeias estáveis de caçadores-coletores, os homens de quem descendemos diretamente realizaram a mais notável invenção da história humana. Ao longo de milênios eles domesticaram grãos e cereais silvestres - o trigo, o milho e o arroz - e se tornaram, finalmente, plenos agricultores. Domesticaram também vários animais e se tornaram pastores e criadores.

Eis que então surge um produto da terra cuja produtividade é geométrica, se comparada com as frutas e os tubérculos que eram antes coletados ou, quem sabe? já esporadicamente plantados. Trigo (civilizações orientais e, depois, européias), arroz (civilizações orientais) e milho (civilizações americanas) podiam ser plantados sazonalmente e produziam em poucos meses; podiam ser transformados em muitas variedades de alimentos altamente nutritivos; podiam ser guardados em silos durante meses, durante anos e, assim, podiam ser usados em tempos de chuva e seca, de fartura e de escassez; podiam ser trocados por outros alimentos, ou por outros bens e, conseqüentemente, variavam de um efêmero bem de uso (a comida) para um poderoso bem de troca (a mercadoria), logo, um meio de acumulação, de riqueza e de poder. A primeira conseqüência do domínio do homem sobre o grão e o cereal foi a transformação de pequenos bandos errantes em tribos maiores e mais estáveis. Antes da cidade, a tribo é um produto da agricultura e do pastoreio. A tecnologia desenvolvida em um surpreendente pouco tempo - comparado com a demorada história de tudo o que o homem inventara antes - pelos agricultores do neolítico equipou grupos humanos mais amplos a atuarem criativamente na transformação de seus meios ambientes e de suas próprias ordens sociais. Pela primeira vez o homem domina de fato a natureza e pode viver coletivamente do que faz sobre ela e, não, do que obtém dela. A revolução neolítica é a aurora do domínio da tribo sobre o mundo. Livre da servidão da caça e da coleta, o homem vai agora ocupar toda a terra, multiplicar-se, criar sociedades estáveis, numericamente grandes e socialmente complexas, e vai gerar a tribo, a aldeia e a cidade, produtos da terra, produtos da agricultura de cereais. Acompanhemos com cuidado esses passos, porque a aldeia e a cidade são os lugares onde o ensino vira a educação.

Através do plantio de grãos o homem pode afinal fixar-se, separar-se de atividades contínuas e de resultado imprevisto, como a caça e a coleta e, finalmente, pode multiplicar-se. Mais livre do que antes da natureza de que é parte, através de estender sobre ela o domínio da cultura, o homem do neolítico construiu aldeias que se tornaram cidades e cidades que começaram a ser o embrião de impérios. Locais de moradia concentrada de muitas pessoas organizadas em sociedades cada vez mais complexas e diferenciadas. A cidade, guardiã da riqueza e do poder acumulados, concentrados em poucas mãos e separados da vida social da comunidade, passou a viver do que o trabalho produzia fora dela, no campo. Para proteger a riqueza e conservar o poder, os senhores da cidade aos poucos criaram o Estado, as milícias, a ciência, a religião e a arte, que já não representavam mais a vida solitária da comunidade antecedente, mas a sua divisão. A necessidade de estender a súditos mais distantes e diferenciados um mesmo poder obrigou a cidade a multiplicar ofícios e profissionais separados, de um lado, do puro exercício do poder (de que em boa medida tornaram-se emissários) e, de outro, do trabalho produtivo. Muitos anos mais tarde, um lavrador mineiro tentando compreender quem eu era, quando disse que era professor, respondeu assim: "Ah, o senhor é uma pessoa dessas que não mandam nem trabalham".

No interior disto a que damos o nome de civilização - um produto do trigo, do arroz e do milho a cidade criou a escola. Primeiro como um lugar nos templos onde eram educados nobres e sacerdotes, também escribas e legisladores; depois, pouco a pouco, como um lugar separado para o puro exercido do ensino, a educação encontra nela e nos sistemas que gera, pela primeira vez, a possibilidade de separar-se das outras práticas sociais em que esteve sempre imersa e tornar-se educação. E transformar-se em uma prática social em si mesma: um domínio de trabalho à parte, separado e, depois, oposto do/ao trabalho popular produtivo de que finalmente se liberta, ao transitar de um lugar de reprodução do saber comunitário a um lugar de um saber erudito e, conseqüentemente, de um novo tipo de poder que o saber descobre "poder ser".

Este é o momento - um longo momento da história - em que a educação popular, como saber da comunidade, torna-se a fração do saber daqueles que, presos ao trabalho, existem à margem do poder. Existem no interior de mundos sociais regidos agora pela desigualdade, e que dedicam uma boa parte do saber que produzem à consagração de sua própria desigualdade.

Uma divisão social do conhecimento necessário não aconteceu de uma vez, é preciso insistir, nem se deu do mesmo modo em todos os tipos de sociedades, desde um remoto momento da Pré-História até hoje. Em muitas das quase 200 tribos indígenas do Brasil atual, o processo geral do saber não produziu nem incorporou ainda divisões como as que conhecemos em nosso meio, aquilo a que os antropólogos costumam chamar de: sociedades complexas. Assim, em mundos sociais simples, sem divisões desiguais de poder e trabalho, um mesmo saber circula através de todo o domínio da vida comunitária. sem agentes especialistas de seu controle e sem instituições exclusivas de trabalho educativo.

Mesmo entre grupos tribais, em aldeias e sociedades mais amplas, onde as relações com a natureza especializam o trabalho e começam a opor categorias de sujeitos sociais, deixando a uns o puro exercício do poder, pequenas confrarias de senhores " feudais", de magos e feiticeiros, de artistas e artesãos, separam do repertório do conhecimento comum (ciência, tecnologia, arte, mitos e crenças tribais) setores de saber de que se apropriam, saberes que reelaboram, com os quais produzem o exercício da prática e a legitimidade de seu oficio e que, em muitos casos, tornam parcial ou totalmente interditos aos "outros". Frações antes comunitárias de palavras que vão do fabrico de um veneno ao conhecimento do cosmos passam para o domínio de confrarias. De unidades restritas de sabedores, onde o ingresso é um privilégio e onde o saber é ensinado como um segredo. Opostos a modos de saber de confraria, um saber de consenso, aquele que entre nós temos chamado de "saber popular", tornou-se, ao mesmo tempo, o domínio comunitário e o limite de todo o conhecimento daqueles que, presos ao trabalho, foram pouco a pouco submetidos a um poder separado e ao seu saber: o saber erudito, dominante, oficial.

Escravos, servos. homens e mulheres comuns aprendiam uns com os outros tudo o que era necessário para o exercício dos seus trabalhos: na casa, no quintal, na lavoura, na construção. Aprendiam nos ritos, a que os magos e sacerdotes os convocavam, os mitos que explicavam sua própria origem e as razões, quase sempre sagradas, da ordem do mundo em que viviam.

Com graus muito variáveis de separação da vida comunitária do cotidiano das "gentes comuns", aquilo a que damos o nome de educação foi aos poucos sendo constituído como um sistema de trocas agenciadas de frações restritas do saber, através do ofício profissional de especialistas em saber e ensinar a saber. Primeiro imersa nas atividades de trabalho produtivo ou simbólico de confrarias de artesãos ou sacerdotes e, depois, levada às ruas e ao mercado, como "loja de primeiras letras", a educação agenciada participou de um processo de inversão do sentido original das trocas solidárias de conhecimentos. Assim, a, educação como prática em si mesma e a escola como o lugar físico do seu exercício representam um desdobramento do processo de expropriação do poder comunitário sobre a totalidade do saber necessário.

A produção de um saber popular se dá, pois, em direção oposta àquela que muitos imaginam ser a verdadeira. Não existiu primeiro um saber cientifico, tecnológico, artístico ou religioso "sábio e erudito" que, levado a escravos, servos, camponeses e pequenos artesãos, tornou-se, empobrecido, um "saber do povo". Houve primeiro um saber de todos que, separado e interdito, tornou-se "sábio e erudito"; o saber legitimo que pronuncia a verdade e que, por oposição, estabelece como "popular" o saber do consenso de onde se originou. A diferença fundamental entre um e outro não está tanto em graus de qualidade. Está no fato de que um, "erudito", tornou-se uma forma própria, centralizada e legítima de conhecimento associado a diferentes instâncias de poder, enquanto o outro, "popular", restou difuso - não-centralizado em uma agência de especialistas ou em um pólo separado de poder - no interior da vida subalterna da sociedade.

A partir desta divisão esses dois domínios de saber não existem nem separados um do outro, nem paralelos um ao outro. A todo momento há relações sociais entre sujeitos e agências. Há um processo contínuo de expropriação erudita de segmentos do saber popular (isto acontece todos os dias nos domínios da música, das artes em geral, da religião, e qualquer um pode observar, prestando atenção). Há um processo contínuo de expropriação popular de segmentos de um saber erudito que a lógica do campesinato, por exemplo, redefine (curandeiros do interior de Goiás compram livros de medicina homeopática, lêem, aprendem, rearticulam o conhecimento "médico" com o "curandeiro" e receitam, ao mesmo tempo, remédios e "garrafadas"). Há um processo continuo de violência simbólica de domínios de especialistas eruditos sobre profissionais de um saber e uma prática populares (investigar, por exemplo, a longa luta no Brasil entre agências de medicina oficial e os especialistas de medicina popular). Há um processo continuo de reorganização de áreas profissionais de saber que traçam e retraçam fronteiras entre um domínio e outro (pesquisar a trajetória da profissionalização do educador no Brasil: professores leigos, "da comunidade", autônomos e, depois, incorporados à "rede oficial de ensino de 1o. grau"; professores-sacerdotes, professores profissionais; o desdobramento recente do "professor" nas várias categorias especializadas de "educador"). Há trocas, conflitos, alianças e resistências. As relações do processo geral do saber não são autônomas, vimos, e portanto observam trajetórias de articulações políticas equivalentes à de outras práticas sociais necessárias.

Um saber da comunidade torna-se o saber das frações (classes, grupos, povos, tribos) subalternas da sociedade desigual. Em um primeiro longínquo sentido, as formas - imersas ou não em outras práticas sociais -, através das quais o saber das classes populares ou das comunidades sem classes é transferido entre grupos ou pessoas, são a sua educação popular.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O processo geral do saber (a educação popular como saber da comunidade). In: --------. Educação popular. São Paulo: Brasiliense, 1997. p. 14-26

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