sexta-feira, 1 de abril de 2011

Indicadores de Qualidade da Educação Infantil

MEC


A educação infantil no Brasil registrou muitos avanços nos últimos vinte anos. A Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 a definiram como primeira etapa da educação básica, antecedendo o ensino fundamental, de caráter obrigatório, e o ensino médio. Essa ampliação do direito à educação a todas as crianças pequenas, desde seu nascimento, representa uma conquista importante para a sociedade brasileira.

Porém, para que esse direito se traduza realmente em melhores oportunidades educacionais para todos e em apoio significativo às famílias com crianças até seis anos de idade, é preciso que as creches e as pré-escolas, que agora fazem parte integrante dos sistemas educacionais, garantam um atendimento de boa qualidade.

Mas como deve ser uma instituição de educação infantil de qualidade?

Entre esses conhecimentos, os resultados de pesquisas sobre a educação infantil no Brasil podem alertar os profissionais sobre os problemas mais frequentes encontrados nas creches e pré-escolas, que precisam ser levados em conta no processo de avaliar e aprimorar a qualidade do trabalho realizado nas instituições de educação infantil.

O Ministério da Educação sintetizou os principais fundamentos para o monitoramento da qualidade da educação infantil no documento Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil (2006).

Esta publicação, objetiva traduzir e detalhar esses parâmetros em indicadores operacionais, no sentido de oferecer às equipes de educadores e às comunidades atendidas pelas instituições de educação infantil um instrumento adicional de apoio ao seu trabalho.

Compreendendo seus pontos fortes e fracos, a instituição de educação infantil pode intervir para melhorar sua qualidade, de acordo com suas condições, definindo suas prioridades e traçando um caminho a seguir na construção de um trabalho pedagógico e social significativo.

Este documento resultou de um trabalho colaborativo que envolveu diversos grupos em todo o país. A partir desse processo, foram definidas sete dimensões fundamentais que devem ser consideradas para a reflexão coletiva sobre a qualidade de uma instituição de educação infantil. Para avaliar essas dimensões, foram propostos sinalizadores da qualidade de aspectos importantes da realidade da educação infantil: os indicadores.

O que são indicadores?

Indicadores são sinais que revelam aspectos de determinada realidade e que podem qualificar algo. Por exemplo, para saber se uma pessoa está doente,

usamos vários indicadores: febre, dor, desânimo. Para saber se a economia do país vai bem, usamos como indicadores a inflação e a taxa de juros. A variação

dos indicadores nos possibilita constatar mudanças (a febre que baixou significa que a pessoa está melhorando; a inflação mais baixa no último ano diz que a economia está melhorando). Aqui, os indicadores apresentam a qualidade da instituição de educação infantil em relação a importantes elementos de sua realidade: as dimensões.

Com um conjunto de indicadores podemos ter, de forma simples e acessível, um quadro que possibilita identificar o que vai bem e o que vai mal na instituição de educação infantil, de forma que todos tomem conhecimento e possam discutir e decidir as prioridades de ação para

sua melhoria. Vale lembrar que esse esforço é de responsabilidade de toda a comunidade: familiares, professoras/es, diretoras/es, crianças, funcionárias/os, conselheiras/os tutelares, de educação e dos direitos da criança, organizações não governamentais (ONGs), órgãos públicos e universidades, enfim, toda pessoa ou entidade que se relaciona com a instituição de educação

infantil e deve se mobilizar pela melhoria de sua qualidade.

Foco na educação infantil e autoavaliação

Este material foi elaborado para ser usado por instituições de educação infantil. Secretarias de Educação e Conselhos Municipais de Educação podem estimular o seu uso.

Entretanto, é importante observar que a adesão das instituições de educação infantil deve ser voluntária, uma vez que se trata de uma autoavaliação. Também é importante lembrar que os resultados não se prestam à comparação entre instituições.


Como utilizar os

Indicadores da Qualidade na

Educação Infantil

ão existe uma forma única para o uso dos Indicadores da Qualidade na Educação Infantil. Ele é um instrumento flexível que pode ser usado de acordo com a criatividade e a experiência de cada instituição de educação infantil, contudo apresentamos algumas sugestões.

Recomendamos que a instituição de educação infantil constitua um grupo para organizar o processo, planejar como será feita a mobilização da comunidade, providenciar os materiais e o tempo necessários, além de

preparar espaços para as reuniões dos grupos e plenária final.

A mobilização da comunidade para participar da avaliação é o primeiro ponto importante no uso dos indicadores. Quanto mais pessoas dos diversos segmentos da comunidade se envolverem em ações para a

melhoria da qualidade da instituição de educação infantil, maiores serão os ganhos para as crianças, para a sociedade e para a educação brasileira.

Por isso, é muito importante que todos os segmentos da comunidade sejam convidados a participar, não somente aqueles mais atuantes no dia a dia. O grupo responsável pela preparação da instituição para a avaliação deve usar a criatividade para mobilizar pais e mães, professoras/es, funcionárias/os, conselheiros tutelares e da educação e outras pessoas da comunidade. Cartas para os pais, faixa na frente da instituição, divulgação no jornal, no transporte público ou na rádio local e discussão

da proposta com as crianças são algumas possibilidades.

Este instrumento foi elaborado com base em aspectos fundamentais para a qualidade da instituição de educação infantil, aqui expressos em dimensões dessa qualidade, que são sete: 1 – planejamento institucional; 2 –

multiplicidade de experiências e linguagens; 3 – interações; 4 – promoção da saúde; 5 – espaços, materiais e mobiliários; 6 – formação e condições de trabalho das professoras e demais profissionais; 7 – cooperação e troca com as famílias e participação na rede de proteção social.

As dimensões podem ser constatadas por meio de indicadores. Cada indicador, por sua vez, é avaliado após o grupo responder a uma série de perguntas. As respostas a essas perguntas permitem à comunidade avaliar a qualidade da instituição de educação infantil quanto àquele indicador. Para facilitar a avaliação, sugere-se que as pessoas atribuam cores aos indicadores.

As cores simbolizam a avaliação que é feita: se a situação é boa, coloca-se cor verde; se é média, cor amarela; se é ruim, cor vermelha.




ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A AVALIAÇÃO

Do livro Avaliação na Educação Infantil

Jussara Hoffmann


(...) um dos pressupostos básicos dessa prática é justamente torná-la investigativa e não setenciativa, mediadora e não constatativa, porque é a dimensão da interação adulto/criança que justifica a avaliação em educação infantil e não a certeza, os julgamentos, as afirmações inquestionáveis sobre o que ela é ou não capaz de fazer. (p.15)


Quais as interpretações construídas pelos professores acerca das crianças? O ato avaliativo é sem dúvida permeado de interpretações a partir de nossas experiências de vida e representações. (...) (p.15-6)


Desvendar o máximo possível os mistérios de uma criança exige, assim, estudo e investigação. (...) (p.17)


(...) Não se trata de um ‘diagnóstico’ de capacidades, mas uma apresentação da variedade de idéias e estratégias de ação que as crianças apresentam para mediar ações educativas que favoreçam o desenvolvimento. Exige um olhar atento do professor, um olhar prescrutador que as observa, estuda suas relações e confia nas suas possibilidades. (p.18-9)


Poderia, assim, apontar os seguintes pressupostos básicos no delineamento de uma proposta de avaliação mediadora em educação infantil:

  1. uma proposta pedagógica que vise levar em conta a diversidade de interesses e possibilidades de exploração do mundo pela criança, respeitando sua própria identidade sócio-cultural, e proporcionando-lhe um ambiente interativo, rico em materiais e situações a serem experienciadas;

  2. um professor curioso e investigador do mundo da criança, agindo como mediador de suas conquistas, no sentido de apóia-la, acompanhá-la e favorecer-lhe novos desafios;

  3. um processo avaliativo permanente de observação, registro e reflexão acerca da ação e do pensamento das crianças, de suas diferenças culturais e de seu desenvolvimento, embasador do repensar do educador sobre o seu fazer pedagógico. (p.19)


Para vygotsky, “a mediação, como intervenção pedagógica desafiadora do potencial de cada criança, é tarefa essencial do avaliador, cujo papel é o de buscar uma articulação significativa entre os conceitos construídos pela criança e formas mais elaboradas de compreensão da realidade. (p. 24) – ex: projeto das tartarugas ninjas


(...) a necessidade do educador abandonar listagens de comportamentos uniformes, padronizados, e buscar estratégias de acompanhamento da história que cada criança vai constituindo ao longo de sua descoberta do mundo. Acompanhamento, no sentido de mediar a sua ação, favorecendo-lhe desafios, tempo, espaço e segurança em sua experiência. Ex: diário de Ana Clara. (p.24)


(...) Percebe-se no processo avaliativo, quão difícil é para o professor dar-se conta de que o que ele acredita observar da criança é decorrente de suas próprias concepções e posturas de vida. (...) (p.47)

(...) O que o educador diz do educando é resultante dessa relação que se estabeleceu e ele denuncia, na avaliação, suas concepções teóricas e sua maior ou menor aproximação com a criança. (...) (p.47)

O que pretendo dizer é que a relação adulto/criança é inerente ao processo avaliativo. Assim, o que se diz sobre uma criança, as ‘verdades’ enunciadas, precisam ser sempre repensadas, transformando-se em hipóteses a serem permanentemente investigadas através da observação e diálogo com as crianças, o que exige estudo e reflexão teórica. Sem dúvida, cada criança carrega seus mistérios a que não se têm acesso, devido à difícil tarefa de compreender plenamente sua história de vida e a lógica do seu pensamento. Daí que o acompanhamento do seu desenvolvimento é inquietante e a avaliação não pode ser considerada como ma descrição de comportamentos observados ao longo do período. (p.48-9)


(...) a avaliação, quer o professor queira ou não, se faz presente no dia-a-dia da instituição, à medida em que ele está analisando as atitudes das crianças, pensando no que vai fazer ou como trabalhar com uma atividade. A avaliação acontece mesmo antes de ele começar um trabalho com elas, porque ele escolhe histórias, planeja jogos e atividades prevendo certas possibilidades ou reações das crianças. (...). (p. 49)


(...) São muito importantes as concepções teóricas como norteadoras do planejamento do professor, mas, é a curiosidade sobre as reações não esperadas das crianças que irá possibilitar, agora ao professor, uma maior riqueza, uma maior coerência, uma maior precisão em termos do acompanhamento do desenvolvimento delas. (p.49)

Ou seja, a subjetividade inerente ao processo avaliativo não é problema à medida em que o educador estiver consciente de tal subjetividade. Tornar-se consciente significa observar mais e melhor as crianças, conversar com elas, assim como discutir sobre suas reações com os pais, diretores, coordenadores pedagógicos, orientadores, outros adultos que convivem com elas. Porque, ao perceber que o que está ‘entendendo’ da criança pode ser através de um entendimento próprio, tenderá o professor a buscar outros pontos de vista que o levem a ampliar a compreensão de suas reações. É preciso que o processo avaliativo supere o individualismo e gere a cooperação entre os elementos da ação educativa. A cooperação envolve o exercício da descentração, a coordenação da diversidade de pontos de vista para se ampliar o entendimento sobre a formação infantil. (p.49-50)


Registros de avaliação significativos procuram documentar e ilustrar a história da criança no espaço pedagógico, sua interação com os vários objetos do conhecimento, sua convivência com os adultos e outras crianças que interagem com ela. Como história individual, devem esses registros revelar trajetórias peculiaridades, curiosidades, avanços e dificuldades próprias de cada criança, respeitando o seu ‘ser’ diferente dos outros. Diferenças entre elas entendidas como normais e não como desvantajosas. (p.51)


Quero dizer que um relatório de acompanhamento da criança, ao mesmo tempo que refaz e registra a história do seu processo dinâmico de construção de conhecimentos, sugere, encaminha, aponta possibilidades da ação educativa para pais, educadores e para a própria criança. Diria até mesmo que apontar caminhos possíveis e necessários para trabalhar com ela é o essencial num relatório de avaliação, não como lições de atitudes à criança ou sugestões de procedimentos aos pais, mas sob a forma de atividades a oportunizar, materiais a lhe serem oferecidos, jogos, posturas pedagógicas alternativas na relação com ela. (p.53)


Princípios Norteadores


Na tentativa de realizar uma síntese organizadora das considerações até aqui feitas, aponto três princípios norteadores da avaliação mediadora e que fundamentam a elaboração de registros de avaliação:


1. Princípio de investigação docente: Trata-se de perseguir um espírito investigador sobre os processos utilizados por cada criança na construção do conhecimento, problematizando o espaço pedagógico, analisando suas reações, elaborando novas perguntas a partir de suas respostas, variando e ampliando os modos de observação. Isto implica que o professor esteja presente no ato avaliativo, com a sua maneira de pensar e de sentir, e que amplie o seu olhar sobre as crianças com os seus próprios pensamentos e sentimentos. (p.53)


2. Princípio de provisoriedade dos juízos estabelecidos: É importante perceber a provisoriedade das observações feitas sobre a criança devido ao seu desenvolvimento aceleradíssimo, à permanente evolução do seu pensamento. De fato, é muito difícil um olhar consistente sobre um grupo de crianças, sobre o que fazem, o que demonstram. Nesse sentido são necessários registros freqüentes sobre o que se observa, como um exercício do aprendizado do olhar do professor, permanecendo sempre atento a novas descobertas de cada criança e do grupo como um todo.


3. Princípio de complementariedade: Se respeitadas as diferenças das crianças no seu processo de desenvolvimento, não poderá o professor persistir na sua avaliação em função de comportamentos padronizados. Com tais procedimentos, o professor resume-se a determinar se elas alcançaram ou não um determinado desempenho, num determinado tempo, mas não encontrará nenhuma resposta sobre como elas o alcançaram ou por que não o alcançaram. Dessa forma, o olhar do professor precisa acompanhar a trajetória da ação e do pensamento da criança, fazendo-lhe sucessivas e gradativas provocações, para poder complementar as hipóteses sobre o seu desenvolvimento. (p.54)

HOFFMANN, Jussara. Avaliação na Pré-escola: um olhar sensível e reflexivo sobre a criança. Porto Alegre, Mediação, 7ª ed, 1996.


Hernández & Ventura ao apresentarem algumas das referências conceituais que serviram de contraponto às que guiavam a prática do professorado no início do processo de inovação, coloca como um dos aspectos “o sentido de significatividade do ensino e da aprendizagem e a função que essa concepção outorga à atuação do professorado e dos alunos. O artigo de Pérez Gómes (1987), em que conclui com a necessidade de um docente flexível e reflexivo, tornou-se especialmente esclarecedor por sua referência à importância da atitude do professor na hora de avaliar se interpreta de uma forma adequada as intervenções do discente.” (Hernández & Ventura, 1998:25-6)

(...) técnica do diário de pesquisa. Tal técnica não se refere especificamente à pesquisa, mas ao processo do pesquisar.

Por que a recusa à escrita ‘fora do texto’? Tratava-se de Ferenczi, Wittgenstein, Malinowski... todos grandes autoridades científicas! Mas, seria por isso que se impediu a publicação desses diários; porque traem O SEGREDO da produção intelectual, os segredos da pesquisa?

Tais textos relevam as implicações do pesquisador e realizam restituições à instituição científica. Falam sobre a vivência de campo cotidiana e mostram como, realmente, se faz a pesquisa. E é isso que não se deve dizer ou mostrar.

Para camuflar um pouco a hipocrisia institucional, descobrem-se sempre ‘ótimos argumentos’. Por exemplo, no diário de Malinowski há inúmeras notas reveladoras de um forte racismo. Ora, seu autor fez uma carreira inteira como anti-racista; inclusive formou grande parte da elite independista africana. Ambas as coisas não combinam bem. A vivência mais íntima do pesquisador se encontrar em contradição com seu texto institucional, ou com as suas posições públicas, é algo muito incômodo. Então, é preciso salvar a imagem não contraditória do pesquisador e, conseqüentemente, da pesquisa. É preciso negar a contradição existente nele, em nós e em todos. É preciso, ainda, recorrer à lógica identitária, numa óbvia recusa a quaisquer análises desnaturalizadoras (institucionais).

A segunda mulher de Malinowski alegava, antes de se decidir pela publicação do diário, que este era ‘muito íntimo’. A intimidade é, como sabemos, uma categoria recusada pela ciência. E a intimidade, ainda sob a forma de diário – no caso, o de Ferenczi -, também se revelou surpreendente para a Psicanálise.

A instituição psicanalítica, como todas as demais, funciona à base de segredos e não ditos. Em seu diário, Ferenczi diz coisas que não se deve dizer. Não são denúncias ou críticas a colegas – isso, positivamente, não parecia ser de seu feitio. Ele enuncia a sua própria produção, relata os sentimentos e dúvidas provocados pela arriscada experiência da análise mútua e procura levar, ao limite, a análise da contratransferência. (...)

Malinowski escreve em seu diário que, um dia, ainda em campo, zangado com seu informante, um homem da região pesquisada, deu-lhe um soco na cara. Segundo o pesquisador, o ajudante-tomado-da-região não lhe trouxera, naquele dia, material suficiente para a adequada continuação de seu trabalho. Isso também faz parte do ‘como se faz pesquisa’. Certamente, da parte secreta dessa atividade; (...)

O diário da pesquisa – que, por sinal, não é, necessariamente, redigido todos os dias – reconstitui a história subjetiva do pesquisador. (...) E tudo isso constitui um material muito rico, também de pesquisa, sobre a pesquisa.

Para terminar, situarei a técnica da escritura ‘fora do texto’ como possível instrumento pedagógico na universidade. Usamo-la em Paris VIII, no Departamento de Ciências da Educação. Vários educadores aconselham, principalmente a partir do mestrado, que se faça um diário da pesquisa. Esse conselho não é uma ordem institucional, embora muitos colegas sejam tão diretivos que assim o pareça. Considero que a feitura de um diário tem por demais implicações subjetivas para que a possamos impor como trabalho universitário obrigatório. Mas, mesmo quando ocorre como imposição, surpreendentemente, a maioria dos estudantes faz o trabalho com prazer.

Periodicamente, os alunos dão aos professores trechos de suas futuras teses, para avaliações e críticas, e mostram fragmentos do diário. Isso permite conhecê-los melhor, assim como as dificuldades existem em seus cotidianos que, apesar de não nos dizerem na conversa face a face, relatam ao papel.

Um outro colega, Remi Hess, propõe o Diário Institucional, técnica já utilizada por ele quando professor do ensino secundário. Na verdade, trata-se de delimitar como campo o cotidiano escolar e, enquanto educador, aplicar a técnica do diário da pesquisa no estabelecimento escolar e, enquanto educador, aplicar a técnica do diário da pesquisa no estabelecimento próprio onde exercita o trabalho pedagógico. Nesta modalidade, o pesquisador não anota diariamente todos os acontecimentos, somente o especial, aquele que lhe tenha tocado a pele. A narrativa pode, inclusive, assumir dimensões bastante fantasiosas, romanescas. (Lourau, 1993:72-82)

Delineio as seguintes questões no sentido de um encaminhamento a uma prática de elaboração de relatórios de avaliação numa perspectiva mediadora:


  1. Os objetivos norteadores da análise do desenvolvimento da criança transparecem no relatório?


Nas atividades artísticas, Marina vem procurando criar desenhos com maior movimento e em maior quantidade. Faz movimentos mais amplos e ocupa melhor a folha quando usa caneta hidrocor. Com giz de cera ainda apresenta dificuldade para isso. Na pintura, observa que experimenta diferentes misturas de cores, surpresa com as cores que cria. Na modelagem está na etapa de amassar, bater e fazer furos na massa, imitando e servindo de sugestão às colegas.’ (Criança de 2 anos e meio)


Esta tem sido uma das atividades que parece desafiar Márcio, provocando alguns ensaios de participação e curiosidade, pois quando quer acompanhar os colegas na escrita de algumas palavras, chega a perguntar-lhes algumas letras.’ (Criança de 5 anos e meio) (p. 69-70)


2. Evidencia-se a interrelação entre objetivos sócio-afetivos e cognitivos a serem alcançados, áreas temáticas trabalhadas e realização de atividades pela criança?


No trabalho sobre o lixo, que contou com a participação da família, Cláudio foi a fundo com seus questionamentos e dúvidas, querendo saber mais sobre a reciclagem do lixo e preservação da natureza. Trouxe para a nossa rodinha, materiais para leitura e cobrou diariamente a releitura desses materiais querendo outras explicações.’ (Criança de 5 anos)



Jéssica demonstra muito interesse pelo espelho desde que o colocamos na sala. Procura imitar minhas caretas e gestos no espelho e não perde a oportunidade de beijar sua própria imagem. Pretendo trazer chapéus, óculos e outros objetos que ela possa colocar para observar suas reações.’ (Criança de 1 ano e meio)


Nos jogos em grupo, Cristina costumava escolher para brincar algum brinquedo que já estivesse sendo utilizado pelos colegas, juntando-se a eles e seguindo seus passos nos jogos de encaixe e construção. Agora já escolhe os seus jogos e convida os colegas para participar das brincadeiras.’ (Criança de 3 anos e meio) (p. 71-3)


3. Percebe-se o caráter mediador do processo avaliativo?


Paulo vem se manifestando cada vez mais nas brincadeiras, contando-me novidades e conversando com os colegas. No início, era muito encabulado e quase não falava ou falava muito baixinho. Sempre o estimulava a falar, conversando muito com ele, e procurando não forçá-lo ou constrange-lo.’ (Criança de 4 anos)


Aline relacionou-se sempre de maneira tranqüila com os colegas, apreciando muito as brincadeiras de bola com os meninos e de maquiagem com as meninas. Raramente envolveu-se em brigas e quando encontrava dificuldade com algum colega pedia-me ajuda, contando o que havia acontecido. Nesses momentos eu a incentivava a dizer aos colegas o que estava pensando e me colocava à disposição para ajuda-la caso fosse necessário. Aceitava minha sugestão, falando com os colegas em voz baixa e sem olha-los.’ (Criança de 5 anos)


Jogos matemáticos desenvolvidos permitiu-me ver a necessidade de sentar junto ao Tomás, nas próximas vezes, para acompanhar o seu pensamento, pois percebo a sua dificuldade em seguir seqüências numéricas de alguns jogos, comprar as peças que lhe cabem e esperar a sua vez de jogar.’ (Criança de 6 anos) (p.73-5)


4. Privilegia-se, ao longo do relatório, o caráter evolutivo do processo de desenvolvimento da criança?


O avanço de Rodrigo em relação ás hipóteses de leitura e escrita vieram acontecendo ao longo do semestre e ele auxiliou várias vezes os colegas, dizendo-lhes as letras das palavras e querendo corrigi-los em algumas situações (sempre a partir de sua concepção silábica de escrita).’ (Criança de 6 anos)


Seu progresso em termos de participação nas atividades grupais aconteceu no ‘Projeto Ecologia’, através de sua disposição, a partir do pedido dos colegas, de fazer os cartazes para os corredores e atuar na campanha. Parece-me que foi um grande esforço para Lúcia que, de certa forma, teve de superar sua timidez para participar.’ (Criança de 4 anos e meio)


Os atritos e reações impulsivas diminuíram consideravelmente, bem como a necessidade de minha interferência... Tive que procurar intensamente travar um diálogo com ele, conversando sobre suas atitudes e reunindo os envolvidos para analisar a situação. Procurei fazer, assim, com que Marcelo ouvisse os amigos e percebesse o ponto de vista deles, o que o ajudou a melhorar suas atitudes. Assim também melhorou sua relação comigo, oferecendo-se para executar pequenas tarefas e favores, como ir à secretaria, distribuir o lanche, organizar a sala.’ (Criança de 5 anos)


De início, as atividades de desenvolvimento motor (correr, pular, saltar, ultrapassar obstáculos) eram mais observadas que praticadas por Ticiana. Logo que sentiu-se segura, com um espaço conquistado no grupo, passou a realizá-los com interesse e entusiasmo.’ (Criança de 2 anos)


Carolina está mais ágil no seu caminhar e agora começa a solicitar os passeios na praça. No início demonstrava um certo receio de se aproximar e brincar com as crianças mais velhas na caixa de areia, agora já procura por lãs e balbucia algumas palavras, procurando conversa.’ (Criança de 1 ano) (p. 75-7)


5. Percebe-se o caráter individualizado no acompanhamento da criança?


Na biblioteca, os contos de fadas estavam sempre em suas mãos. Bruna pedia, freq6uentemente, que eu lhe contasse as histórias e procurava respeitar a ordem dos livros nas estantes, demonstrando já ter adquirido uma postura de leitora.’ (Criança de 4 anos e meio)


A vivacidade e curiosidade de Diego em relação a todos os assuntos trabalhados, trazendo suas próprias experiências fora da escola, transparecem em suas perguntas e comentários:

  • Por que a história do Patinho Feio é chamada de contos de fadas. Se não tem nada de fada, rei ou rainha?

  • Profe, quando é que a gente vai visitar aquela fábrica que a gente combinou?’ (Criança de 5 anos e meio)


Carol já percebeu que não gosto quando puxa os cabelos das amigas ou empurra os menores e, agora, quando faz isso, olha logo para mim e balança a cabeça dizendo não.’ (Criança de 1 ano). (p.78-9)


HOFFMANN, Jussara. Avaliação na Pré-escola: um olhar sensível e reflexivo sobre a criança. Porto Alegre, Mediação, 7ª ed, 1996.



Alguns trechos de relatórios:


Nas atividades artísticas, Marina vem procurando criar desenhos com maior movimento e em maior quantidade. Faz movimentos mais amplos e ocupa melhor a folha quando usa caneta hidrocor. Com giz de cera ainda apresenta dificuldade para isso. Na pintura, observa que experimenta diferentes misturas de cores, surpresa com as cores que cria. Na modelagem está na etapa de amassar, bater e fazer furos na massa, imitando e servindo de sugestão às colegas.’ (Criança de 2 anos e meio)


Esta tem sido uma das atividades que parece desafiar Márcio, provocando alguns ensaios de participação e curiosidade, pois quando quer acompanhar os colegas na escrita de algumas palavras, chega a perguntar-lhes algumas letras.’ (Criança de 5 anos e meio) (p. 69-70)


No trabalho sobre o lixo, que contou com a participação da família, Cláudio foi a fundo com seus questionamentos e dúvidas, querendo saber mais sobre a reciclagem do lixo e preservação da natureza. Trouxe para a nossa rodinha, materiais para leitura e cobrou diariamente a releitura desses materiais querendo outras explicações.’ (Criança de 5 anos)


Jéssica demonstra muito interesse pelo espelho desde que o colocamos na sala. Procura imitar minhas caretas e gestos no espelho e não perde a oportunidade de beijar sua própria imagem. Pretendo trazer chapéus, óculos e outros objetos que ela possa colocar para observar suas reações.’ (Criança de 1 ano e meio)


Nos jogos em grupo, Cristina costumava escolher para brincar algum brinquedo que já estivesse sendo utilizado pelos colegas, juntando-se a eles e seguindo seus passos nos jogos de encaixe e construção. Agora já escolhe os seus jogos e convida os colegas para participar das brincadeiras.’ (Criança de 3 anos e meio) (p. 71-3)


Paulo vem se manifestando cada vez mais nas brincadeiras, contando-me novidades e conversando com os colegas. No início, era muito encabulado e quase não falava ou falava muito baixinho. Sempre o estimulava a falar, conversando muito com ele, e procurando não forçá-lo ou constrangê-lo.’ (Criança de 4 anos)


Aline relacionou-se sempre de maneira tranqüila com os colegas, apreciando muito as brincadeiras de bola com os meninos e de maquiagem com as meninas. Raramente envolveu-se em brigas e quando encontrava dificuldade com algum colega pedia-me ajuda, contando o que havia acontecido. Nesses momentos eu a incentivava a dizer aos colegas o que estava pensando e me colocava à disposição para ajuda-la caso fosse necessário. Aceitava minha sugestão, falando com os colegas em voz baixa e sem olha-los.’ (Criança de 5 anos)


Jogos matemáticos desenvolvidos permitiu-me ver a necessidade de sentar junto ao Tomás, nas próximas vezes, para acompanhar o seu pensamento, pois percebo a sua dificuldade em seguir seqüências numéricas de alguns jogos, comprar as peças que lhe cabem e esperar a sua vez de jogar.’ (Criança de 6 anos) (p.73-5)


O avanço de Rodrigo em relação ás hipóteses de leitura e escrita vieram acontecendo ao longo do semestre e ele auxiliou várias vezes os colegas, dizendo-lhes as letras das palavras e querendo corrigi-los em algumas situações (sempre a partir de sua concepção silábica de escrita).’ (Criança de 6 anos)


Seu progresso em termos de participação nas atividades grupais aconteceu no ‘Projeto Ecologia’, através de sua disposição, a partir do pedido dos colegas, de fazer os cartazes para os corredores e atuar na campanha. Parece-me que foi um grande esforço para Lúcia que, de certa forma, teve de superar sua timidez para participar.’ (Criança de 4 anos e meio)


Os atritos e reações impulsivas diminuíram consideravelmente, bem como a necessidade de minha interferência... Tive que procurar intensamente travar um diálogo com ele, conversando sobre suas atitudes e reunindo os envolvidos para analisar a situação. Procurei fazer, assim, com que Marcelo ouvisse os amigos e percebesse o ponto de vista deles, o que o ajudou a melhorar suas atitudes. Assim também melhorou sua relação comigo, oferecendo-se para executar pequenas tarefas e favores, como ir à secretaria, distribuir o lanche, organizar a sala.’ (Criança de 5 anos)


De início, as atividades de desenvolvimento motor (correr, pular, saltar, ultrapassar obstáculos) eram mais observadas que praticadas por Ticiana. Logo que sentiu-se segura, com um espaço conquistado no grupo, passou a realizá-los com interesse e entusiasmo.’ (Criança de 2 anos)


Carolina está mais ágil no seu caminhar e agora começa a solicitar os passeios na praça. No início demonstrava um certo receio de se aproximar e brincar com as crianças mais velhas na caixa de areia, agora já procura por lãs e balbucia algumas palavras, procurando conversa.’ (Criança de 1 ano) (p. 75-7)


Na biblioteca, os contos de fadas estavam sempre em suas mãos. Bruna pedia, freqüentemente, que eu lhe contasse as histórias e procurava respeitar a ordem dos livros nas estantes, demonstrando já ter adquirido uma postura de leitora.’ (Criança de 4 anos e meio)


A vivacidade e curiosidade de Diego em relação a todos os assuntos trabalhados, trazendo suas próprias experiências fora da escola, transparecem em suas perguntas e comentários:

  • Por que a história do Patinho Feio é chamada de contos de fadas. Se não tem nada de fada, rei ou rainha?

  • Profe, quando é que a gente vai visitar aquela fábrica que a gente combinou?’ (Criança de 5 anos e meio)


Carol já percebeu que não gosto quando puxa os cabelos das amigas ou empurra os menores e, agora, quando faz isso, olha logo para mim e balança a cabeça dizendo não.’ (Criança de 1 ano). (p.78-9)

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Educação popular vista de uma forma mais ampla

O PROCESSO GERAL DO SABER

(A educação popular como saber da comunidade)

É preciso recuar longe, memórias de um passado remoto, para conhecermos como o saber terá emergido à vida e, circulando entre tipos de pessoas, terá diferenciado uma região de si mesmo como educação. Como isto terá se passado muito antes de seres, pouco a pouco, haverem dominado a escrita, é evidente que não ficaram marcas e tudo o que os investigadores do assunto encontram são sinais efêmeros, de que constroem suposições. Exploremos aqui algumas delas.

O Saber surge e circula

Quando um remoto antropóide, um ascendente muito próximo do primeiro homem, emergiu à vida, ele já possuía alguns traços corporais que o tornariam diferente de todos os outros seres vivos, mesmo os mais evoluídos até então. Tinha sinais no corpo que transformariam o ato de saber, que diferencialmente se distribui por tudo o que é vivo, no ato do saber simbólico. Que tornariam o conhecimento que qualquer ser vivo tem para viver, na consciência do saber, que é o começo da possibilidade de os seres vivos aprenderem não apenas diretamente do e com o seu meio natural, naturalmente, mas uns com os outros e uns entre os outros, culturalmente.

Quando os nossos ascendentes peludos, ainda desprovidos de símbolos, palavras e, portanto, de cultura, desceram das árvores onde por milênios sobreviveram a salvo de répteis e grandes mamíferos predadores, eles já então eram seres: 1) aptos a se colocarem de pé sobre as patas traseiras e assim ficarem por longo tempo, deixando livres as mãos para trabalharem as coisas à sua volta; 2) com mãos que, ao invés de se desenvolverem como patas, garras ou nadadeiras, tornaram-se sensíveis, capazes de lidar com grandes e pequenos objetos e, o que é mais importante, mãos com o dedo polegar que, ao longo da evolução da espécie, aproximou-se dos outros dedos até quando, já nos hominídeos, tornou-se rotativo e oposto a todos os outros (experimente usar as mãos sem os polegares); 3) com os dois olhos colocados não dos lados do rosto, mas juntos, no espelho da face, capazes de verem tridimensionalmente uma só imagem ao mesmo tempo, o que gerou a possibilidade da atenção concentrada, dirigida por um olhar em foco desde muito perto até muito longe e, o que é mais, um olhar que via "em cores"; 4) com um cérebro proporcionalmente maior do que o de todos os outros mamíferos, capaz de crescer em volume e complexificar-se em circunvoluções entre as gerações, em direção às áreas do pensamento e da integração da identidade (da consciência de um eu), domínios internos ao mistério da vida, desde onde viria a desabrochar a alvorada do homem.

Assim, em apenas um ramo de toda a vida, a própria vida começou a fazer com que aos poucos a evolução corporal cessasse de se modificar significativamente, menos no cérebro. Tal como outros seres vivos, estes antropóides que nos antecederam de alguns milhões de anos terão sobrevivido porque aprenderam a viver em bandos errantes onde, com uma flexibilidade muito maior do que em outras espécies de animais, havia uma progressiva diferenciação de tarefas. Onde o interesse coletivo deixava margens maiores para a inovação, e onde não apenas uma ordem biológica do corpo, mas uma ordem cultural do grupo a cada "dia" mais (leia-se "milênios"), regia a conduta individual.

Alguns acontecimentos da relação entre o corpo e a vida social, aparentemente sem importância, são importantes. Mais do que isto, são fundamentais. A evolução da vida limitou entre nossos ancestrais a descendência a um filho de cada vez (gêmeos são exceções). A fêmea da espécie tem apenas duas mamas na frente do corpo. Mesmo entre os macacos superiores (nossos primos-irmãos, mais do que nossos ancestrais) a mãe carrega o filho aconchegado à frente, no peito, e não nas costas, como entre os macacos inferiores e os outros mamíferos. Amamenta os filhos face a face e os olhos se encontram enquanto o leite transfere a vida de uma ao outro. Crias de antropóides e hominídeos demoram muito tempo a "crescer" e, assim, dependem de relações afetivas estreitas com os pais durante uma longa e importante parte de suas vidas.

Ora, essas trocas de olhares e gestos de afeição não estão longe de ser o repertório dos momentos que garantem o surgimento de sentimentos de "eu" e de "nós", o que possibilita um relacionamento entre iguais tão estável e profundo que possa ser, por isso mesmo, a condição de um modo diferente de ensinar-e-aprender. O ensino, que entre os homens é um bailado de gestos de corpos dóceis, mãos hábeis, olhos acurados que se encontram face a face e, juntos, olham em uma mesma direção, de inteligências conscientes e identidades capazes de sentimentos até então inexistentes, precisou esperar que o corpo da vida tomasse tais formas e fosse capaz de estabelecer tais relações com o outro, no mundo, para então aparecer plenamente.

Muito mais do que entre os macacos superiores e mais ainda do que entre os seres que já então existem entre o animal e o humano, a vida coletiva se impõe e a pequena determinação biológica de suas relações entre sujeitos pensantes gera uma lenta passagem do conhecimento, para o conhecimento simbólico. Se durante muitos milênios para sugerir ao filho uma estrela o pai tinha de esperar a noite e apontar para uma delas, veio o tempo em que ao meio-dia ele podia pronunciar algo como "taug", e os dois estariam pensando em "estrela". Primeiro não há símbolos e é difícil saber e transferir o saber; depois eles dizem, são sinais; finalmente representam, são símbolos, a morada do saber humano.

Desprotegidos de força e armas do corpo para matar ou fugir e, inicialmente, desprovidos de um saber necessário que pudesse passar de um corpo a outros, os pequenos seres humanos atravessaram longos períodos da vida convivendo em companhia de iguais no interior de grupos cada vez mais estáveis e, ao longo do tempo, cada vez mais complexos: bandos errantes, hordas, famílias, parentelas, clãs, aldeias, tribos, onde por sobre as tarefas de reprodução da vida física, os homens aprendem a criar a vida simbólica. A criar um tipo absolutamente novo de trocas onde entre um ser e o outro não há apenas eles e a natureza, mas também objetos - o produto do trabalho do homem sobre a natureza -, sinais, símbolos, instituições e significados - o produto do homem sobre si mesmo - a cultura.

Então as pessoas aprendem. Como ensinar-e-aprender torna-se inevitável para que os grupos humanos sobrevivam agora e através do tempo, é necessário que se criem situações onde o trabalho e a convivência sejam também momentos de circulação do saber. Entre mundos e homens muito remotos, onde sequer emergira ainda a nossa espécie - o homo sapiens sapiens - este é o primeiro sentido em que é possível falar de educação e de educação popular. As primeiras situações em que a convivência estável e a comunicação simbólica transferem intencionalmente tipos e modos de saber necessários à reprodução da vida individual e coletiva. O conhecimento técnico dos vários meios, então rudimentares, de lidar com o mundo da natureza; os códigos de regras de conduta que, ao mesmo tempo, constituem e preservam a ordem de pequenos mundos sociais; os repertórios de significados regidos por idéias e palavras, por símbolos e saberes que instauram e multiplicam os mundos simbólicos do imaginário do homem.

Entre antropólogos é costume dizer-se que a sobrevivência de um mundo social depende de os seus sujeitos descobrirem meios de entre eles, segundo as suas categorias de pessoas, circularem sempre: bens (alimentos, objetos, instrumentos e utensílios), mulheres (esposas que geram filhos e que, unindo-se a homens de seu grupo/clã ou de outros, estabelecem alianças entre os homens) e mensagens. Quando o homem sabe e ensina o saber, é sobre e através das relações de objetos, pessoas e idéias que ele está falando. E é no interior da totalidade e da diferença de situações através das quais o trabalho e as trocas de frutos do trabalho garantem a sobrevivência, a convivência e a transcendência, que, no interior de uma vida coletiva anterior à escola, mas plena de educação, os homens entre si se ensinam-e-aprendem. Ao mesmo tempo que socialmente a educação, um domínio da cultura entre outros, é condição da permanente recriação da própria cultura, individualmente a educação, uma relação de saber entre trocas de pessoas, é condição da criação da própria pessoa. Aprender significa tornar-se, sobre o organismo, uma pessoa, ou seja, realizar em cada experiência humana individual a passagem da natureza à cultura.

“A educação forma a personalidade do indivíduo médio e o prepara para viver a cultura: é pela educação que a gênese da cultura se opera no indivíduo. Pode-se descrever a cultura mostrando como o indivíduo a assimila e como nele se constitui, à medida que ele a vai assimilando. Isto porque a educação é, ao mesmo tempo, uma instituição que o indivíduo encontra e o meio que ele tem para encontrar todas as instituições." (Mikel Dufrenne, La Personalité de Base)

Podemos imaginar que durante alguns poucos milhões de anos, e atravessando, dos primitivos bandos errantes dos primeiros homos, às tribos e aldeias estáveis de agricultores de nossa própria espécie, após a revolução neolítica, uma reduzida, porém crescente diferenciação de relações e papéis sociais terá correspondido a uma reduzida, porém crescente, diferenciação de situações, práticas e papéis da reprodução do saber. Locais especializados para o ensino, onde especialistas em ensinar fariam o seu trabalho, é uma criação muito tardia do homem. Durante quase toda a história social da humanidade a prática pedagógica existiu sempre, mas imersa em outras práticas sociais anteriores. Imersa no trabalho: durante as atividades de caça, pesca e coleta, depois, de agricultura e pastoreio, de artesanato e construção. Ali os mais velhos fazem e ensinam e os mais moços observam, repetem e aprendem. lmersa no ritual: seja no enterro de um morto (os homens do paleolítico superior já faziam isto com todo o cuidado), num rito de iniciação, ou em outra qualquer celebração coletiva, as pessoas cantam, dançam e representam, e tudo o que fazem não apenas celebra, mas ensina. E não ensina apenas as artes do canto, da dança e do drama. Ritos são aulas de codificação da vida social e de recriação, através dos símbolos que se dança, canta e representa, da memória e da identidade dos grupos humanos. Imersa nos diferentes trabalhos do viver o cotidiano da cultura: aparentemente espontâneas e desorganizadas, as situações de brincadeiras de meninos, as tropelias de adolescentes e as trocas do amor entre jovens são momentos de trocas de condutas e significados, regidas por regras e princípios que, aos poucos, incorporam à pessoa de cada um os códigos das diferentes outras situações da vida social. Incorporam, no seu todo, a própria estrutura simbólica da sociedade no universo pessoal de idéias, ações e sentimentos de cada pessoa.

Quando os homens do passado longínquo faziam, como fazem ainda hoje todas as sociedades tribais existentes, os seus ritos de passagem, eles não celebravam apenas o fato de que meninos e meninas chegaram a uma determinada idade. Celebravam também aqueles que eram reconhecidos como sabedores dos conhecimentos necessários para o ingresso na vida adulta: jovens que podiam - porque sabiam - caçar e pescar, guerrear e criar e, portanto, jovens que podiam casar e ter filhos, porque já haviam aprendido o bastante para serem adultos.

Enquanto o trabalho produtivo não se dividiu socialmente e um poder comunitário não se separou da vida social, também o saber necessário não teria existido separado da própria vida. Fora alguns poucos especialistas de artes e ofícios, como os da religião primitiva, em algumas tribos, com pequenas diferenças todos sabiam tudo e entre si se ensinavam-e-aprendiam, seja na rotina do trabalho, seja durante raros ritos onde, solenes e sagrados, os homens falavam aos deuses para, na verdade, ensinarem a si próprios quem eram eles, e por quê. Esta foi uma primeira educação popular.

A divisão social do saber

É muito fácil imaginar, mas é difícil conhecer com certeza como uma fração do saber terá sido aprisionada por sistemas de educação e como, portanto, uma parte do ensino terá se tornado propriedade de educadores profissionais e da escola. É possível que primeiro tenham existido especialistas de tipos de saber que, mesmo servindo a todos. não eram possuídos por todos os membros do grupo. É possível que, aos poucos, tenham surgido pequenas confrarias de sabedores especializados: artistas, magos e feiticeiros. Tais confrarias de mestres de ofícios restritos terão se constituído por toda parte à medida que, sobretudo após a revolução neolítica, os homens dominaram meios e técnicas de produção de bens que estabilizaram os grupos sociais e tornaram possível e necessária uma grande diferenciação de sua ordem. Ali, primeiro artistas, artesãos e sábios da tribo e, depois, profissionais derivados de trabalho simbólico - agentes de culto, de cura e de comando - terão se separado parcialmente do trabalho produtivo direto e constituído modos e domínios sociais de trabalho e saber nos quais poucas pessoas, escolhidas por algum motivo, eram iniciadas. Modos e domínios de um saber próprio, apropriado do que antes fora comum e, pouco a pouco, separado dos conhecimentos coletivos, transformando-se, assim, no embrião de um poder de alguns. Mas uma separação completa de algumas modalidades de saber certamente foi ainda mais tardia na história.

Entre cerca de 10.000 e 15.000 anos atrás, os grupos humanos realizaram transformações extraordinárias na ordem da vida social. Após as conquistas tecnológicas dos homos que nos antecederam - os homens de Cro-Magnon - dentro de um mundo onde já havia o domínio do fogo, a construção de casas rústicas, a formação de primeiras pequenas aldeias estáveis de caçadores-coletores, os homens de quem descendemos diretamente realizaram a mais notável invenção da história humana. Ao longo de milênios eles domesticaram grãos e cereais silvestres - o trigo, o milho e o arroz - e se tornaram, finalmente, plenos agricultores. Domesticaram também vários animais e se tornaram pastores e criadores.

Eis que então surge um produto da terra cuja produtividade é geométrica, se comparada com as frutas e os tubérculos que eram antes coletados ou, quem sabe? já esporadicamente plantados. Trigo (civilizações orientais e, depois, européias), arroz (civilizações orientais) e milho (civilizações americanas) podiam ser plantados sazonalmente e produziam em poucos meses; podiam ser transformados em muitas variedades de alimentos altamente nutritivos; podiam ser guardados em silos durante meses, durante anos e, assim, podiam ser usados em tempos de chuva e seca, de fartura e de escassez; podiam ser trocados por outros alimentos, ou por outros bens e, conseqüentemente, variavam de um efêmero bem de uso (a comida) para um poderoso bem de troca (a mercadoria), logo, um meio de acumulação, de riqueza e de poder. A primeira conseqüência do domínio do homem sobre o grão e o cereal foi a transformação de pequenos bandos errantes em tribos maiores e mais estáveis. Antes da cidade, a tribo é um produto da agricultura e do pastoreio. A tecnologia desenvolvida em um surpreendente pouco tempo - comparado com a demorada história de tudo o que o homem inventara antes - pelos agricultores do neolítico equipou grupos humanos mais amplos a atuarem criativamente na transformação de seus meios ambientes e de suas próprias ordens sociais. Pela primeira vez o homem domina de fato a natureza e pode viver coletivamente do que faz sobre ela e, não, do que obtém dela. A revolução neolítica é a aurora do domínio da tribo sobre o mundo. Livre da servidão da caça e da coleta, o homem vai agora ocupar toda a terra, multiplicar-se, criar sociedades estáveis, numericamente grandes e socialmente complexas, e vai gerar a tribo, a aldeia e a cidade, produtos da terra, produtos da agricultura de cereais. Acompanhemos com cuidado esses passos, porque a aldeia e a cidade são os lugares onde o ensino vira a educação.

Através do plantio de grãos o homem pode afinal fixar-se, separar-se de atividades contínuas e de resultado imprevisto, como a caça e a coleta e, finalmente, pode multiplicar-se. Mais livre do que antes da natureza de que é parte, através de estender sobre ela o domínio da cultura, o homem do neolítico construiu aldeias que se tornaram cidades e cidades que começaram a ser o embrião de impérios. Locais de moradia concentrada de muitas pessoas organizadas em sociedades cada vez mais complexas e diferenciadas. A cidade, guardiã da riqueza e do poder acumulados, concentrados em poucas mãos e separados da vida social da comunidade, passou a viver do que o trabalho produzia fora dela, no campo. Para proteger a riqueza e conservar o poder, os senhores da cidade aos poucos criaram o Estado, as milícias, a ciência, a religião e a arte, que já não representavam mais a vida solitária da comunidade antecedente, mas a sua divisão. A necessidade de estender a súditos mais distantes e diferenciados um mesmo poder obrigou a cidade a multiplicar ofícios e profissionais separados, de um lado, do puro exercício do poder (de que em boa medida tornaram-se emissários) e, de outro, do trabalho produtivo. Muitos anos mais tarde, um lavrador mineiro tentando compreender quem eu era, quando disse que era professor, respondeu assim: "Ah, o senhor é uma pessoa dessas que não mandam nem trabalham".

No interior disto a que damos o nome de civilização - um produto do trigo, do arroz e do milho a cidade criou a escola. Primeiro como um lugar nos templos onde eram educados nobres e sacerdotes, também escribas e legisladores; depois, pouco a pouco, como um lugar separado para o puro exercido do ensino, a educação encontra nela e nos sistemas que gera, pela primeira vez, a possibilidade de separar-se das outras práticas sociais em que esteve sempre imersa e tornar-se educação. E transformar-se em uma prática social em si mesma: um domínio de trabalho à parte, separado e, depois, oposto do/ao trabalho popular produtivo de que finalmente se liberta, ao transitar de um lugar de reprodução do saber comunitário a um lugar de um saber erudito e, conseqüentemente, de um novo tipo de poder que o saber descobre "poder ser".

Este é o momento - um longo momento da história - em que a educação popular, como saber da comunidade, torna-se a fração do saber daqueles que, presos ao trabalho, existem à margem do poder. Existem no interior de mundos sociais regidos agora pela desigualdade, e que dedicam uma boa parte do saber que produzem à consagração de sua própria desigualdade.

Uma divisão social do conhecimento necessário não aconteceu de uma vez, é preciso insistir, nem se deu do mesmo modo em todos os tipos de sociedades, desde um remoto momento da Pré-História até hoje. Em muitas das quase 200 tribos indígenas do Brasil atual, o processo geral do saber não produziu nem incorporou ainda divisões como as que conhecemos em nosso meio, aquilo a que os antropólogos costumam chamar de: sociedades complexas. Assim, em mundos sociais simples, sem divisões desiguais de poder e trabalho, um mesmo saber circula através de todo o domínio da vida comunitária. sem agentes especialistas de seu controle e sem instituições exclusivas de trabalho educativo.

Mesmo entre grupos tribais, em aldeias e sociedades mais amplas, onde as relações com a natureza especializam o trabalho e começam a opor categorias de sujeitos sociais, deixando a uns o puro exercício do poder, pequenas confrarias de senhores " feudais", de magos e feiticeiros, de artistas e artesãos, separam do repertório do conhecimento comum (ciência, tecnologia, arte, mitos e crenças tribais) setores de saber de que se apropriam, saberes que reelaboram, com os quais produzem o exercício da prática e a legitimidade de seu oficio e que, em muitos casos, tornam parcial ou totalmente interditos aos "outros". Frações antes comunitárias de palavras que vão do fabrico de um veneno ao conhecimento do cosmos passam para o domínio de confrarias. De unidades restritas de sabedores, onde o ingresso é um privilégio e onde o saber é ensinado como um segredo. Opostos a modos de saber de confraria, um saber de consenso, aquele que entre nós temos chamado de "saber popular", tornou-se, ao mesmo tempo, o domínio comunitário e o limite de todo o conhecimento daqueles que, presos ao trabalho, foram pouco a pouco submetidos a um poder separado e ao seu saber: o saber erudito, dominante, oficial.

Escravos, servos. homens e mulheres comuns aprendiam uns com os outros tudo o que era necessário para o exercício dos seus trabalhos: na casa, no quintal, na lavoura, na construção. Aprendiam nos ritos, a que os magos e sacerdotes os convocavam, os mitos que explicavam sua própria origem e as razões, quase sempre sagradas, da ordem do mundo em que viviam.

Com graus muito variáveis de separação da vida comunitária do cotidiano das "gentes comuns", aquilo a que damos o nome de educação foi aos poucos sendo constituído como um sistema de trocas agenciadas de frações restritas do saber, através do ofício profissional de especialistas em saber e ensinar a saber. Primeiro imersa nas atividades de trabalho produtivo ou simbólico de confrarias de artesãos ou sacerdotes e, depois, levada às ruas e ao mercado, como "loja de primeiras letras", a educação agenciada participou de um processo de inversão do sentido original das trocas solidárias de conhecimentos. Assim, a, educação como prática em si mesma e a escola como o lugar físico do seu exercício representam um desdobramento do processo de expropriação do poder comunitário sobre a totalidade do saber necessário.

A produção de um saber popular se dá, pois, em direção oposta àquela que muitos imaginam ser a verdadeira. Não existiu primeiro um saber cientifico, tecnológico, artístico ou religioso "sábio e erudito" que, levado a escravos, servos, camponeses e pequenos artesãos, tornou-se, empobrecido, um "saber do povo". Houve primeiro um saber de todos que, separado e interdito, tornou-se "sábio e erudito"; o saber legitimo que pronuncia a verdade e que, por oposição, estabelece como "popular" o saber do consenso de onde se originou. A diferença fundamental entre um e outro não está tanto em graus de qualidade. Está no fato de que um, "erudito", tornou-se uma forma própria, centralizada e legítima de conhecimento associado a diferentes instâncias de poder, enquanto o outro, "popular", restou difuso - não-centralizado em uma agência de especialistas ou em um pólo separado de poder - no interior da vida subalterna da sociedade.

A partir desta divisão esses dois domínios de saber não existem nem separados um do outro, nem paralelos um ao outro. A todo momento há relações sociais entre sujeitos e agências. Há um processo contínuo de expropriação erudita de segmentos do saber popular (isto acontece todos os dias nos domínios da música, das artes em geral, da religião, e qualquer um pode observar, prestando atenção). Há um processo contínuo de expropriação popular de segmentos de um saber erudito que a lógica do campesinato, por exemplo, redefine (curandeiros do interior de Goiás compram livros de medicina homeopática, lêem, aprendem, rearticulam o conhecimento "médico" com o "curandeiro" e receitam, ao mesmo tempo, remédios e "garrafadas"). Há um processo continuo de violência simbólica de domínios de especialistas eruditos sobre profissionais de um saber e uma prática populares (investigar, por exemplo, a longa luta no Brasil entre agências de medicina oficial e os especialistas de medicina popular). Há um processo continuo de reorganização de áreas profissionais de saber que traçam e retraçam fronteiras entre um domínio e outro (pesquisar a trajetória da profissionalização do educador no Brasil: professores leigos, "da comunidade", autônomos e, depois, incorporados à "rede oficial de ensino de 1o. grau"; professores-sacerdotes, professores profissionais; o desdobramento recente do "professor" nas várias categorias especializadas de "educador"). Há trocas, conflitos, alianças e resistências. As relações do processo geral do saber não são autônomas, vimos, e portanto observam trajetórias de articulações políticas equivalentes à de outras práticas sociais necessárias.

Um saber da comunidade torna-se o saber das frações (classes, grupos, povos, tribos) subalternas da sociedade desigual. Em um primeiro longínquo sentido, as formas - imersas ou não em outras práticas sociais -, através das quais o saber das classes populares ou das comunidades sem classes é transferido entre grupos ou pessoas, são a sua educação popular.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O processo geral do saber (a educação popular como saber da comunidade). In: --------. Educação popular. São Paulo: Brasiliense, 1997. p. 14-26

SISTEMA ESCOLAR

COMPONENTES BUROCRÁTICOS DOS SISTEMAS ESCOLARES (1)

Peter M. Blau

(...) A BUROCRACIA NÃO É um fenômeno recente. Existiu em formas rudimentares há milhares de anos, no Egito e em Roma. Mas a tendência para a burocratização aumentou muito durante o último século. Na sociedade contemporânea, a burocracia tornou-se uma instituição dominante - na verdade, a instituição que exprime a era moderna. Se não compreendermos esta forma institucional, não podemos entender a vida social atual.

A enorme extensão das nações modernas e de suas organizações internas é um fator da expansão da burocracia. Em períodos anteriores, em sua maioria os países eram pequenos e mesmo os grandes tinham apenas uma fraca administração central, e havia poucas organizações formais, exceto o governo. As nações modernas contam com muitos milhões de cidadãos, grandes exércitos, corporações gigantescas, sindicatos enormes e um grande número de amplas associações voluntárias (1). Certamente, extensão não é sinônimo de organização burocrática. Entretanto, os problemas colocados pela administração em larga escala tendem a conduzir à burocratização. Na realidade, as grandes organizações que persistiram por mais tempo na Antiguidade e mesmo sobreviveram a esse período, o Império Romano e a Igreja Católica, estavam completamente burocratizadas.

Nos Estados Unidos, dados estatísticos sobre emprego ilustram a tendência para as amplas organizações burocráticas. O governo federal empregou 8000 funcionários civis em 1820, um quarto de milhão há 50 anos e 10 vezes esse número atualmente. Se se acrescentam os homens em serviço militar, quase 10% da força de trabalho norte-americana, seis milhões de pessoas, estão a serviço do governo federal. Ainda maior é o número dos que trabalham em empresas particulares de grande escala, sendo exemplo extremo o da American Telegraph Company com 3/4 de um milhão de empregados. Mais de 3/4 dos empregados no trabalho manufatureiro estão em firmas com cem ou mais empregados; e mesmo no comércio varejista, o baluarte dos pequenos empreendimentos privados, 1/6 de todos os empregados trabalha para firmas desse tamanho.

Uma grande e crescente proporção do povo norte-americano passa sua vida de trabalho como pequenas peças nos complexos mecanismos das organizações burocráticas. E isso não é tudo, pois as burocracias afetam também outros aspectos de nossa vida. A agência de empregos que procuramos para conseguir colocação profissional e o sindicato ao qual nos filiamos para proteger esse mesmo trabalho ou ocupação; o supermercado e a cadeia de lojas onde compramos, a escola que nossos filhos freqüentam e os partidos políticos em cujos candidatos votamos; a fraternidade (3) onde nos divertimos e a igreja onde prestamos culto - todas essas são, quase sempre, grandes organizações do tipo que tende a ser burocraticamente organizada (...). As principais características de uma estrutura burocrática, no caso "típico-ideal" (4), segundo WEBER, são as seguintes:

  1. "As atividades regulares necessárias às finalidades da organização são distribuídas de maneira fixa, como deveres 'oficiais' (5). A nítida divisão do trabalho torna possível empregar apenas pessoas especializadas em cada posição determinada e tornar cada uma delas responsável pela eficaz realização de seus deveres. Esse alto grau de especialização tornou-se de tal forma parte de nossa vida socioeconômica, que tendemos a esquecer que ele não prevaleceu em épocas passadas e que se trata de uma inovação relativamente recente.
  2. "A organização dos cargos segue o princípio de hierarquia isto é, cada cargo está sob o controle e supervisão de outro mais elevado" (6). Cada funcionário desta hierarquia administrativa é responsável, perante seu superior, pelas decisões e ações de seus subordinados, assim como pelas suas próprias. Para ser capaz de desempenhar sua responsabilidade pelo trabalho dos subordinados, ele possui autoridade sobre estes - o que significa que tem o direito de emitir ordens, que os subordinados têm o dever de obedecer. Essa autoridade é estritamente circunscrita e confiada àquelas orientações que são relevantes às atividades ligadas ao cargo. O uso das prerrogativas do cargo, para estender além de tais limites o poder de controle sobre os subordinados, não constitui exercício legítimo da autoridade burocrática.
  3. As operações são orientadas "por um sistema coerente de regras abstratas e consistem na aplicação destas regras a casos particulares" (7). Este sistema de normas é destinado a assegurar uniformidade na organização de cada tarefa, independentemente do numero de pessoas nesta engajadas, bem como a coordenação das diferentes tarefas. Portanto, as regras e regulamentos explícitos definem a responsabilidade de cada membro da organização e as relações entre eles. Isso não implica que os deveres burocráticos sejam necessariamente simples e rotineiros. É preciso lembrar que a adesão estrita a normas gerais para decidir-se sobre casos específicos caracteriza não apenas o trabalho do encarregado do fichário, mas também aquele da Suprema Corte de Justiça. Para o primeiro, isso pode envolver, meramente, o arquivamento em ordem alfabética; para o segundo, implica interpretar a lei do país ou estado, a fim de configurar juridicamente os casos legais mais complicados. As obrigações burocráticas distribuem-se, quanto à complexidade, de um a outro desses extremos.
  4. "O funcionário ideal desempenha o seu cargo com um espírito de impessoalidade formalista, 'Sine ira et studio', sem ódio ou paixão, e, portanto, sem afeição ou entusiasmo (8). Para que os padrões racionais governem as atividades sem a interferência de considerações pessoais, deve prevalecer dentro da organização - e especialmente para com os clientes - um tratamento imparcial ou desinteressado. Se um funcionário desenvolve fortes sentimentos para com alguns subordinados ou clientes, dificilmente ele pode evitar que tais sentimentos influenciem suas decisões 'oficiais'. Em conseqüência, e freqüentemente sem que ele esteja ciente disso, pode ser particularmente tolerante ao avaliar o trabalho de um de seus subordinados ou pode discriminar contra alguns clientes e em favor de outros. A exclusão de considerações pessoais dos assuntos 'oficiais' constitui um pré-requisito para a imparcialidade, bem como para a eficiência. Os mesmos fatores que tornam um burocrata governamental impopular entre seus clientes, com sua atitude de distância e uma falta de identificação com os problemas pessoais destes, beneficiam, na realidade, esses mesmos clientes. Imparcialidade e ausência de interesses pessoais caminham juntos. O funcionário que não mantém distância social e se torna pessoalmente interessado nos casos de seus clientes tende a ser parcial em seu tratamento para com estes, favorecendo quem ele prefere. O desapego impessoal gera tratamento eqüitativo para com todas as pessoas e, assim, promove a democracia na administração.
  5. O emprego na organização burocrática é baseado em qualificações técnicas e protegido contra a demissão arbitrária. "Ele constitui uma carreira. Há um sistema de promoções de acordo com a antiguidade no emprego ou o rendimento no trabalho, ou ambos" (9). Essas 'políticas' de pessoal, que são encontradas não apenas no serviço público, mas também em muitas companhias privadas, encorajam o desenvolvimento da lealdade para com a organização e o esprit de corps entre seus membros. A conseqüente identificação dos empregados com a organização motiva-os a realizarem maiores esforços para a consecução dos interesses desta. Pode também dar lugar a uma tendência para tais empregados pensarem em si próprios como uma classe à parte e superior ao resto da sociedade. Entre os funcionários públicos civis, essa tendência tem sido mais acentuada na Europa especialmente na Alemanha, do que nos Estados Unidos; mas, entre os funcionários militares, pode ser encontrada também nesta última nação.
  6. "A experiência tende, universalmente, a mostrar que o tipo puramente burocrático de organização administrativa...é, de um ponto de vista puramente técnico, capaz de atingir o mais elevado grau de eficiência" (10). "O mecanismo burocrático plenamente desenvolvido apresenta-se em face de outras organizações como a máquina em face de modos não-mecânicos de produção" (11). A burocracia resolve o problema, caracteristicamente organizacional, de elevar ao máximo a eficiência da organização e não apenas a dos indivíduos.

A superior eficiência administrativa da burocracia é o resultado de suas diversas características, tais como foram delineadas por WEBER. Para que um indivíduo trabalhe eficientemente, ele deve possuir as habilidades necessárias e aplicá-las racional e vigorosamente; é necessário, porém, mais que isso para que uma organização funcione com eficiência. Cada um de seus membros deve ter as habilidades necessárias à realização de suas tarefas. Este é o propósito da especialização e do emprego com base em qualificações técnicas, freqüentemente identificadas por testes objetivos. Mesmo os especialistas, entretanto, podem ser impedidos, devido ao seu 'viés' pessoal, de tomar decisões racionais. A ênfase sobre a impessoalidade visa eliminar esta fonte de ação irracional. Mas a racionalidade individual não é suficiente. Se os membros da organização tomassem decisões racionais isoladamente, seu trabalho não seria coordenado e a eficiência da organização ficaria afetada. Portanto, há necessidade de disciplina para delimitar a esfera de decisão racional, o que é feito pelo sistema de normas e regulamentos e pela hierarquia de supervisão. Além disso, 'políticas' de pessoal que permitam aos empregados sentirem segurança em seus empregos e preverem progressos na carreira, para a fiel execução dos deveres, desencorajam suas tentativas de impressionarem os superiores pela introdução de hábeis inovações que podem pôr em risco a coordenação. A fim de que essa ênfase na obediência disciplinada às normas e disposições regulamentares não enfraqueça a motivação dos empregados para dedicarem suas energias ao seu trabalho, devem ser proporcionados incentivos para a realização de esforços. As 'políticas' de pessoal, que cultivam a lealdade à organização e que proporcionam a promoção com base no mérito, desempenham essa função. Em outras palavras, o efeito conjunto das características da burocracia é o de criar condições sociais que obriguem cada membro da organização a agir de formas tais que - pareçam racionais ou não do seu ponto de vista individual - favoreçam a busca racional dos objetivos da organização.

Ainda que sem declarar explicitamente, WEBER fornece uma análise funcional da burocracia. Nesse tipo de análise, uma estrutura social é interpretada mostrando-se como cada um dos seus elementos contribui para sua persistência e operações efetivas. O interesse em descobrir todas essas contribuições acarreta, entretanto, o perigo de que o cientista possa negligenciar a investigação das perturbações que diversos elementos produzem na estrutura. Em conseqüência, a formulação weberiana pode fazer parecer que a estrutura social funciona mais suave ou facilmente do que na realidade ocorre, desde que WEBER negligencia as disrupturas que de fato existem. Para proteger-nos contra esse perigo, torna-se imprescindível ampliar a análise além da mera consideração de funções, como Roberto K. MERTON evidencia (12). O estudo das disfunções - conseqüências que interferem no ajustamento e criam problemas na estrutura - é de especial importância para evitar falsas implicações acerca da estabilidade e para explicar a mudança social (13).

O reexame da discussão precedente sobre as características da burocracia, à luz do conceito de disfunção, revela inconsistências e tendências em conflito. Se uma reservada distância caracteriza a atitude dos membros da organização, de uns para com outros, é improvável que se desenvolva entre eles um elevado esprit de corps. O exercício estrito da autoridade no interesse da disciplina induz os subordinados, ansiosos de serem altamente considerados por seu superiores, a ocultarem, destes, defeitos no trabalho, e essa obstrução do fluxo de informação 'para cima', na hierarquia, impede a administração eficiente. A insistência sobre a conformidade tende também a engendrar rigidez na conduta 'oficial' e a inibir o exercício racional de julgamento necessário para a execução eficiente das tarefas. Se as promoções são baseadas no mérito, muitos empregados não experimentam progressos em suas carreiras; se são baseadas fundamentalmente no tempo de serviço, de forma a dar aos empregados esta experiência e por esse meio encorajá-los a tornarem-se identificados com a organização, o sistema de promoção não fornece fortes incentivos para aumentar os esforços e a excelência no trabalho. Essas ilustrações bastam para indicar que o mesmo fator, que aumenta a eficiência num sentido, freqüentemente a ameaça em outro; ele pode ter conseqüências funcionais e disfuncionais.

WEBER estava bastante consciente de tais tendências contraditórias na estrutura burocrática. Mas, desde que tratou as disfunções apenas incidentalmente, sua discussão deixa a impressão de que a eficiência administrativa nas burocracias é mais aceitável e menos problemática do que na verdade o é. Em parte, foi sua intenção apresentar uma imagem idealizada da estrutura burocrática, e ele utilizou o instrumento conceptual apropriado a este propósito (...).

Dizer que há uma tendência histórica para a burocracia é afirmar que muitas organizações passam de formas menos burocráticas para formas mais burocráticas de administração (...).

Já foi mencionado que o simples tamanho estimula o desenvolvimento de burocracias, uma vez que estas são mecanismos de execução de tarefas administrativas em larga escala. A grande nação moderna ou empresa privada ou sindicato tem mais probabilidade de serem burocratizados do que os seus congêneres no passado. Mais importante do que o tamanho como tal é, no entanto, o aparecimento de problemas administrativos especiais. Assim é que no antigo Egito o complexo trabalho de construir e distribuir canais d'água através do país deu lugar à primeira grande burocracia conhecida na história. Em outros países, particularmente aqueles com extensas fronteiras a exigirem defesa, os métodos burocráticos foram introduzidos para resolver o problema de organizar um exército permanente ou efetivo e o problema correlato de arrecadar impostos com essa finalidade (...).

Uma burocracia em funcionamento aparece como bem diferente da descrição abstrata da sua estrutura formal. Muitas normas 'oficiais' são transgredidas; os membros da organização agem antes como seres humanos - com freqüência amigavelmente e às vezes de forma inoportuna - do que como máquinas impessoais desumanizadas.

Esta contradição entre as exigências 'oficiais' e a conduta real, nas burocracias, pode, porém, ser mais aparente do que real. Talvez a violação de algumas regras não tenha conseqüências para a organização, sendo as regulamentações fundamentais normalmente obedecidas. É também possível que uma atitude 'distante' ou 'impessoal' seja necessária apenas naquelas relações envolvidas no processamento das questões ou processos 'oficiais', tais como nas relações de empregados-clientes ou de subordinado-superior, ficando a informalidade pessoalizada limitada às relações entre empregados que trabalham próximos uns dos outros, mas não uns com outros, por exemplo, como acontece num grupo de trabalho de estenógrafos. Entretanto, mesmo que tais divisões nítidas entre as esferas formal e informal existissem sempre, e este não é o caso, seria ainda importante indagar se as relações informais e as práticas 'não-oficiais' têm quaisquer efeitos significativos sobre o funcionamento e a realização dos objetivos da organização (...).

Quando examinamos suficientemente pequenos segmentos de burocracias, a fim de observarmos em detalhe o seu funcionamento, descobrimos padrões de atividades e interações que não podem ser explicados pela estrutura 'oficial'. O grupo de trabalho, seja como parte das forças armadas, de uma fábrica ou do governo civil, caracteriza-se por uma teia de relações informais e um conjunto de práticas 'não-oficiais', que têm sido chamadas sua 'organização informal'. Este conceito chama a atenção para o fato de que desvios da estrutura formal consistem em padrões socialmente organizados e não meramente conseqüências de diferenças ocasionais de personalidade. Auxiliar os outros ou participar de jogos era, no Bank Wiring Observation Room, uma prática estabelecida e não uma manifestação de personalidade rebelde de um ou outro indivíduo. Variações na produtividade não eram, no caso, devidas ao fato de que a capacidade mecânica de alguns trabalhadores fosse superior à de outros e, sim, à organização social do grupo como é evidenciado pela constatação de que a produtividade estava relacionada à participação na 'clique' e não à destreza manual ou à inteligência (...).

Paradoxalmente, práticas 'não-oficiais' que são explicitamente proibidas pelos regulamentos 'oficiais' às vezes favorecem a realização dos objetivos da organização. Esta constatação decisiva suscita questões a respeito do conceito de 'organização informal' e a respeito da eficiência burocrática. Os cientistas sociais freqüentemente estabelecem uma dicotomia entre a organização informal e a organização formal, e tentam situar toda observação cm uma ou outra dessas categorias. Esse procedimento pode ser simplesmente enganoso, desde que aquela é uma distinção analítica: há, de fato, uma organização única. Quando agentes governamentais tomam decisões 'oficiais' no curso de discussões informais, sua conduta não pode ser significativamente classificada como pertencente quer à organização formal, quer à informal. Mesmo quando um trabalhador fabril trabalha mais lentamente do que poderia fazê-lo - se esteve em conformidade com normas 'não-oficiais' - seu comportamento estava influenciado também pelas exigências formais para manufaturar equipamento telefônico e usar determinados métodos de produção destinados a este fim. Os padrões 'oficiais' assim como os 'não-oficiais', e as relações sociais formais bem como as informais afetam os modos pelos quais as atividades diárias dos grupos de trabalho se tornam organizadas, mas o resultado é uma organização social cm cada grupo de trabalho e não duas (...).

As burocracias não são estruturas tão rígidas como popularmente se admite. Sua organização não permanece fixa de acordo com o quadro formal, mas evolui sempre para novas formas. Mudam as condições, surgem problemas, enquanto se enfrentam com estes, os membros da organização estabelecem novos procedimentos e transformam freqüentemente suas relações sociais, modificando a estrutura. Os padrões de atividades e interações que não foram ou, talvez, ainda não foram institucionalizados, mostram a burocracia em processo de mudança.

Algumas das práticas que surgem no decorrer das operações favorecem a realização dos objetivos da organização, enquanto outras a prejudicam. O interesse 'oficial' da organização burocrática exige que práticas deste segundo tipo sejam desencorajadas e as do primeiro tipo estimuladas. O problema administrativo consiste em conseguir isso (...).

A 'administração científica' tem procurado racionalizar a produção industrial e a administração, descobrindo e aplicando os mais eficientes métodos de trabalho (14). Estudos de tempo-e-movimento constituem uma ilustração bem conhecida dessa abordagem: os movimentos necessários aos trabalhadores mais habilidosos para realizarem uma dada tarefa no menor tempo possível são determinados, e esses movimentos precisos são ensinados a outros trabalhadores. Mas, como assinala um escritor, "os tecnólogos da administração têm sido mais bem sucedidos em demonstrar procedimentos eficientes para a produtividade máxima do que em conseguir que tais procedimentos sejam aceitos pelos trabalhadores" (15). Esse fracasso da 'administração científica' foi o resultado inevitável da sua pressuposição - mais evidente nos sistemas de incentivos salariais 'científicos' - de que apenas interesses econômicos racionais governam a conduta dos empregados, bem como da sua negligência dos fatores sociais. Administrar uma organização social segundo critérios puramente técnicos de racionalidade é irracional por ignorar os aspectos não racionais da conduta social.

De um ponto de vista abstrato, o método mais racional para obtenção de uniformidade e coordenação numa ampla organização parecia ser inventar procedimentos eficientes para toda tarefa e insistir em que eles fossem estritamente adotados. Na prática, entretanto, tal sistema não funciona eficazmente por várias razões. Uma delas é que ele admite implicitamente que a administração é onisciente. Nenhum sistema de regras e de supervisão pode ser tão minuciosamente detalhado de modo a prever todas as exigências ou necessidades que possam aparecer. Mudanças em condições externas criam novos problemas administrativos e as próprias inovações introduzidas para resolvê-los têm freqÜentemente conseqüências imprevistas, que produzem novos problemas. Por exemplo, os entrevistadores de uma agência pública de empregos foram avaliados na base do número de candidatos a empregos que eles entrevistavam por mês. Como os empregos se tornavam raros após a II Guerra Mundial, os entrevistadores, induzidos por este método de avaliação do seu trabalho, tenderam a dispensar clientes para os quais os empregos não podiam ser rapidamente localizados. No interesse da eficiência da agência de empregos, foi necessário desencorajar tais tendências. Com este objetivo, um novo método de avaliação, baseado fundamentalmente no numero de pretendentes colocados em empregos, foi instituído. Essa inovação motivou os entrevistadores a exercerem maiores esforços para encontrar empregos para os clientes, mas também deu origem à competição, entre eles, pelos róis de vagas de empregos, que os entrevistadores às vezes chegavam a esconder uns dos outros; e essas práticas competitivas constituíram em novo obstáculo a operações eficientes. Como reação a esse novo problema, o grupo mais coeso de entrevistadores desenvolveu normas operativas e suprimiu, com total sucesso, as tendências competitivas, com o resultado de ter sido aumentada a eficiência produtiva (16). A não ser que os membros da organização tenham liberdade e iniciativa para lidar com os problemas ligados às suas atividades, quando estes surgem, a eficiência sofrerá.

Além disso, tais barreiras à eficiência do trabalho não podem ser erradicadas por decreto 'oficial'. É este o caso no que diz respeito às ansiedades e sentimentos de anomia (estado de quem se sente isolado e desorientado), que surgem freqüentemente nos mais baixos escalões das hierarquias burocráticas. Relações informais nos grupos de trabalho coesos reduzem tais tensões disruptivas. Mas uma vez que existam grupos coesos no interior de uma burocracia, (...) eles desenvolverão seus próprios padrões de conduta e os imporão aos seus membros. A eficiência administrativa não pode ser promovida ignorando-se o fato de que o rompimento dos indivíduos é afetado pelas relações destes com colegas; mas, sim, tomando-se conhecimento deste fato e procurando criar, na organização, aquelas condições que conduzem a práticas 'não-oficiais' que mais favoreçam do que prejudiquem a realização dos objetivos da organização.

Finalmente, numa cultura democrática, onde a independência de ação e a igualdade de status são altamente valorizadas, regras detalhadas e supervisão rígida provocam ressentimento; e empregados ressentidos estão muito pouco motivados a desempenharem seus deveres dedicada e ativamente. Existe um acentuado contraste entre a disciplina rigorosa que os empregados voluntariamente impõem a si próprios, por compreenderem que seu trabalho requer padrões rígidos de execução, e a constante irritação por serem tolhidos por regras pouco importantes, que encaram como arbitrariamente impostas a eles. Os membros de uma agência federal, por exemplo, reclamavam freqüentemente por terem que preencher formulários precisamente como todos nós fazemos; e também contra outras regras internas de importância secundária. Aceitavam, porém, livremente, a disciplina muito mais rigorosa de observar rigidamente, em suas investigações, as regulamentações legais - o que necessitaria da própria imposição legal. Reprimir a capacidade de auto-disciplina e solapar a motivação ao exercício de esforços, quando se prescreve em detalhes como deve ser realizada cada tarefa, é desperdício, para dizer o menos. Um método mais eficiente de administração burocrática consiste em canalizar essa capacidade e motivação, a fim de aproveitá-las para os fins da organização.

Essas considerações sugerem uma revisão do conceito de estrutura burocrática. Ao invés de considerá-la um sistema administrativo com características específicas, pode ser preferível seguir uma outra indicação de WEBER e, então, conceber a burocracia em termos dos seus propósitos. Burocracia, então, pode ser definida como a organização que eleva ao máximo a eficiência em administração, quaisquer que sejam suas características formais; ou como um método institucionalizado de organização da conduta social no interesse da eficiência administrativa. Com base nesta definição, o problema de central importância é o da rápida remoção dos obstáculos às operações eficientes, os quais aparecem de modo recorrente. Como sugere a discussão precedente, isso não pode ser conseguido com um sistema preconcebido de procedimentos rígidos; mas, sim, pela criação de condições favoráveis ao contínuo desenvolvimento adaptativo da organização. Para estabelecer tal padrão de auto-ajustamento numa burocracia, é preciso que prevaleçam condições que encoragem seus membros a enfrentarem os problemas que surgem e a encontrarem o melhor método de produzirem resultados específicos por sua própria iniciativa, e que evite práticas 'não-oficiais' que contrariem os objetivos da organização como, por exemplo, as que levam à redução do rendimento do trabalho (...).

Notas

1 Peter M. BLAU, "Bureaucracy in Modern Society". Randon House, Nova York, 1962, pp 20-61. Tradução de Maria Cecília F. Donnangelo.

2 Veja-se Kenneth BOULDINO, "Te Organizational Revolution". Harper & Brothers. Nova York. 1953.

3 Tipo de associação comum entre alunos e ex-alunos universitários norte-americanos (N. do T.).

4 Observação: "WEBER trata do burocracia como o que ele designa um 'tipo ideal'. este conceito metodológico não representa uma média dos atributos de todas as burocracias existentes (ou outras estruturas sociais), mas um tipo puro, resultante da apreensão, por abstração, dos aspectos burocráticos mais característicos de todas as organizações conhecidas. Desde que a burocratização perfeita nunca é completamente realizada, nenhuma organização empiricamente constatável corresponde cientificamente a essa construção cientifica" (Peter M.Blau, ob.cit. p. 34). (N. dos Orgs.).

5 "From Max Weber: Essays in Sociology", tradução de H. H. Gerth e C. Wright Mills. Oxford University Press. Nova York. 1946. p. 196.

6 Max WEBER. "The Theory of Social and Economic Organization". trad. de A. M. Hendersone e Talcott Parsons, Oxford University Press, Nova York, 1947, p. 331.

7 Ibid, p. 330.

8 Ibid, p. 340.

9 Ibid, 334.

10 Ibid. p. 337.

11 "From Max Weber: Essays in Sociology", ob. cit., p. 214.

12 Robert K. MERTON, "Social Theory and Social Structure, Free Press, Glencoe, 1949, pp. 21-81.

13 Para uma discussão geral da análise funcionalista, veja-se Ely CHYNOY, "Sociologiscal Perspective: Basic Concepts and Their Application" (Studies in Sociology), Random House, Nova York, 1954, cap. 5.

14 Veja-se Frederick W.Taylor, "The Principles of Scientific Management", Haper & Brothers, Nova York, 1911.

15 Wilbert E. Moore, "Industrial Relations and the Social Order" Macmillan Company, Nova York, 1947, p. 190.

16 Para uma ampla discussão deste caso, veja-se Peter M.Blau, "The Dynamic of Burocracy". University of Chicago, 1955, pp 49-67.